amores expresos, blog do ANTÔNIO

Friday, April 27, 2007

ABAIXO A DENTADURA

Abaixo a dentadura

Fui tirar uma dúvida sobre olmos e sequóias na Wikipédia e o site não entrou. Achei que tinha dado pau, tentei de novo, nada. Uma hora a ditadura tinha que dar as caras: Wikipédia is not welcome na República Popular da China.

HEAVY EM TONGJI

XANGAI - HEAVY EM TONGJI

Quando eu vi, tava tocando heavy metal com Shu Xin -- ou Mister Hotness, como Virgínia e De la Rosa, as duas mexicanas apaixonadas, chamam o galã chinês de braços tatuados, cabelo na cintura e calça jeans justa e rasgada. Ele na guitarra, eu na bateria. Fazíamos uma dupla estranha. “Onde vamos parar com toda essa abertura?”, pareciam dizer os olhos esbugalhados dos velhinhos e velhinhas que passavam pela calçada e metiam a cabeça dentro da lojinha, quase uma garagem, no extremo norte de Xangai.

Quando cruzei a cidade do sul até o norte, pela manhã, não imaginava que iria acabar tocando bateria com um heavy metal simpático apelidado Mister Hotness. Fui até a universidade de Tongji, onde minha amiga Renata está estudando chinês. Lugar lind;issimo. Prédios centenários se misturam com construções modernas, em meio a chorões deslumbrantes, carvalhos e outras dessas árvores elegantes de clima temperado que devem ter nomes como olmos ou choupos ou sequóias... Flores por todo lado.

Uma enorme estátua de Mao, na entrada, acena para ninguém. Os jovens que passam de braços dados ou sós estão mais concentrados em seus I-pods do que naquela enorme mão de pedra que, até outro dia, apontava os rumos da nação. A deslumbrante primavera de Xangai só torna mais obsoleta a estátua do homem que, há pouco mais de quarenta anos, ordenou a jovens como aqueles, em universidades como aquela, que arrancassem as flores dos vasos – supérfluas à revolução do proletariado – e a grama do chão – planta burguesa, símbolo da dominação inglesa.

Cruzamos o campus e encontramos as duas mexicanas num restaurante muçulmano chinês. Quando entramos ali eu disse: Renata, se eu mostro a foto do restaurante pro seu pai ele vai te mandar mais dinheiro no fim do mês só para garantir que você coma num lugar melhorzinho. As moças me disseram que podia confiar. (Só não devia, em hipótese alguma, ir ao banheiro, porque a experiência seria traumática). E foi ali, enquanto comíamos um macarrão com carne de cabrito e coentro e outro com frango e pimentão, deliciosos, que elas começaram a falar de Mister Hotness, quase babando.

Shu Xin é um personagem de Nick Hornby, na versão chinesa de Alta Fidelidade. Passa o dia na loja de guitarras, sozinho, tocando e maldizendo o povo de Xangai que, em sua visão, só pensa em dinheiro e não entende nada de rock’n roll. De umas semanas para ca, no entanto, sua solidão é interrompida todo dia na hora do almoço pelas duas mexicanas que vão lá, conversar e sonhar com cenas de uma novela sino-mexicana. A conversa é difícil porque ele sabe muito pouco inglês. Segundo elas, apenas algumas frases aprendidas em filmes pornôs como “my dick is big and strong!” “let me see those horny boobies, baby” e outras sentenças que não se aprende no CCAA. Elas não se importam. Ficam ali a tarde toda, entre guitarras, noodles e suspiros.

Depois do almoço, fomos até a lojinha. Uma bateria velha fica bem no meio do espaço de uns quatro metros quadrados. Perguntei se podia tocar. Ele disse que só depois das duas da tarde, regras do condomínio. Passeei pela universidade e voltei lá pelas três. As mexicanas já haviam ido embora, Renata estava estudando para a prova. Cheguei meio tímido, disse Ni Hau (olá), fiz uma mímica de “eu na bateria e você na guitarra, cara!”, ele acenou com a cabeça e começamos.

Se eu fosse um pouquinho melhor poderia aplicar aquele chavão de que conversamos na linguagem universal da música, mas não toco desde a adolescência (quando eu já era ruim), de modo que minha habilidade no esperanto musical é quase tão sofrível quanto meu mandarim. Sei é que fui feliz. Tocamos por uma meia hora -- prova de que a censura chinesa não é assim tão rigorosa. No fim ele deu o cartão, eu dei meu msn e agradeci do fundo do coração (vocês não sabem como gosto de tocar, mesmo mal, bateria). Ele foi simpático como todos os chineses. “No thanks! No thanks! Come back, you want, come back, we play”. Quis retribuir de alguma forma. Quase falei pra ele, ô, Shu Xin, essas mexicanas aí, tem jogo, viu? Pode apostar, elas tão na sua... Já pensou, as duas juntas, você aplicando todo o inglês que aprendeu nas suas tele-aulas? Achei, no entanto, que Virgínia e De la Rosa, como duas boas latinas, devem saber a hora de partir pro ataque.

O que não é a globalização, não?

Coisas

Miojo que passarinho não come



Além de Mao, Shirley, Helen e Caxambu, tenho outra amiga na China, de quem ainda não falei: Renata Sung. (Já dá para fazer um time de futsal com minha turma). Filha de mãe chinesa e pai brasileiro, Renata veio estudar mandarim aqui por um ano. Foi ela quem me levou para ver os sapos e enguias no Carrefour, me ajudou a comprar uma câmera fotográfica (dura na queda na arte da pechincha) e, ontem, me apresentou ao corredor de miojos do supermercado. Como ela diz: irado! Melhor ainda, ela me passou a técnica de sobrevivência na China: você esquenta água na garrafa térmica elétrica usada para o chá (tem uma aqui no quarto, em cima do frigobar) e a despeja no pote de miojo, no melhor estilo Macgiver na cozinha. Comprei logo uns cinco potes coloridos.

Ontem fiz meu primeiro miojo. Você saca logo a sofisticação do produto: eles não têm apenas um saquinho com aquele pó radioativo, mas três: um com o pó, outro com temperos e uns floquinhos de algo que intuo ser carne desidratada e outro com uma espécie de gel laranja. Acho que o último era pimenta – ou urânio enriquecido?

Renata bem que me avisou: “esses que têm uma malagueta desenhada são muito fortes, viu?” Não dei ouvidos. Quase morri. Fiquei na varanda, com a boca aberta no trigésimo andar, esperando que o vento vindo da Sibéria acalmasse minhas judiadas papilas. Tudo bem. Como dizia Nietzsche, o que não me mata me fortalece. Ou, como dizia tia Corália, o que não mata engorda.





Pantufas



Minha amiga Bia pediu para eu falar mais sobre pantufas. Não sei muita coisa, só sei que não se entra calçado em casa. Você deixa o sapato ao lado da porta e eles te dão umas pantufas. Na casa do Mao tem um armário ao lado da entrada, onde eles guardam umas sobressalentes, embaladas em plástico e tudo. Não sei se depois eles jogam fora ou embalam de novo.

Aqui no hotel é a mesma coisa. O funcionário veio trazer um travesseiro, deixou o sapato no hall e entrou de meia. Será que eu deveria ter pantufas para oferecer a ele? Vou perguntar pro Mao.



Cócoras



A leitora Nana caçoa da minha incapacidade de acocoração e sugere que eu faça yoga ou pilates. Cara Nana, em primeiro lugar, queria dizer que sou bastante alongado (para um homem). Em segundo: não é qualquer cócoras essa praticada por aqui. Trata-se de toda uma técnica milenar, que exige não só alongamento, mas equilíbrio e, acredito até, paz de espírito. Acho que sou capaz de aprender a cerimônia do chá inteira antes de me agachar como eles sem cair de bunda.



Slim Ling Ling



Os chineses são todos magros. Comem esse monte de carne e macarrão e têm esses físicos de Bruce Lee, lépidos e fagueiros. Qual será o segredo? Até agora, vi uma única chinesa gorda. Tentei pegar a câmera, correndo, para filmar, mas ela também era lépida e fagueira, apesar do sobrepeso, e sumiu na multidão. Seria coreana?

Na foto

Ontem fui subir numa torre enorme que tem em Pudong, para ver a cidade lá de cima. Na base da torre, passei atrás de um chinês que posava para uma foto e clic, percebi que tinha ido parar dentro da câmera de seu amigo. Fiquei com uma sensação estranha e imediatamente me solidarizei com esse pessoal que não se deixa fotografar porque diz que a câmera rouba a alma.
Fiquei imaginando minha imagem ali, transformada em megapixels, no bolso do chinês. Milhares ou milhões de zeros e uns colocados lado a lado que formam meu nariz, minha orelha, meus olhos, a perna direita levantada, a perna esquerda apoiada... Aí fiquei me imaginando indo no bolso do chinês para uma cidadezinha perdida no interior da China. A família do cara olhando a foto, me vendo ali atrás -- o gringo no fundo da foto --, figurante desconhecido, ignorado, sem nenhuma importância. E vai que o cara imprime a foto, vou ficar guardado no fundo de uma gaveta numa cidadezinha no interior da China, amarelando (foto digital também amarela?), até o dia, quem sabe, que ele faça uma limpeza, ou morra, e os filhos joguem a foto no lixo, e eu, o chinês que posava e o maior prédio de Xangai vamos parar num forno, ou num aterro. Cruz credo.
Depois de subir na torre fui a um museu que contava a história da cidade, mas não prestei atenção em muita coisa: só conseguia reparar nas pessoas das fotos antigas, para sempre presas ali dentro, com seus cachimbos, cartolas, bigodes e almas amarelando diante da visitação pública. Todos mortos, que nem eu, um dia, na foto do chinês.

Contrapeso

Deito e durmo, exausto, antes da meia-noite. Nunca foi tão fácil pegar no sono. Desde que cheguei, acho, sonho com a casa da mi-nha infância. Às vezes ela tem a mobília do meu apartamento atual, às vezes está fechada há muitos anos e eu dou uma volta pelos cô-modos, lembrando de cada coisa. É um pouco triste, eu percebo que aquilo não me pertence mais, sinto que estou num lugar que acabou, mas é intenso e talvez bom. Também tenho visto rostos doces de mulheres que amei em tempos idos – true love, Helen e Shirley, I know. Só o rosto, o sorriso, essa capacidade que a mulher amada tem de ninar nossas angústias. (Ê, Edipão brabo!). É o pessoal das coxias dando uma força, calçando a mesa bamba do estrangeiro com algo de familiar.
-- Atenção atenção, inconsciente?, Superego falando, copia?
-- Inconsciente na escuta, QAP.
--Negócio é o seguinte, o cara tá na China, perdidaço, vê aí no baú imagens from the heart que que tem de bom pra gente dar uma base pro garoto, QSL?
-- Positivo. Gol do Corinthians? Sonho erótico? Vôo?
-- Negativo, precisa pegar pesado, fala pros estagiários irem nas pastas Infância e Amor e fazerem uma pesquisa boa.
-- Positivo. Uma e meia tá aí.
-- Negativo, o cara tá dormindo cedo, onze e meia tem que tá aqui senão vai começar o REM e a gente vai ter que passar material antigo. E se só tiver a fita “Pelado na escola” vai dar uma desestabili-zada legal.
-- Onze e meia fica difícil, Super, tem muito material recalcado e cê sabe como é que é a burocracia pra liberar.
-- Diz que eu mandei passar, traz aqui que eu carimbo.
--Beleza. Câmbio.
-- Câmbio.
Eu estou na China nas melhores condições possíveis, não que-ria estar agora em nenhum outro lugar da Terra, mas ser estrangeiro traz sempre alguma dor. Não falo daquele medinho de fazer as espe-radas cagadas inevitáveis, como entrar pela porta errada do ônibus, meter o cartão do metrô de cabeça pra baixo, embolar o pessoal na catraca e levar um esporro em mandarim. Falo dessa tristeza de es-tar longe de todo mundo que a gente ama, das pessoas que sabem que a gente é. (Nos poucos momentos em que estou no hotel fico o-lhando os bonequinhos vermelhos do messenger e torcendo para que algum fique verde, mas com 11 horas de fuso, só dá desencon-tro).
Lembro que quando era mais novo não entendia alguém ser condenado ao ostracismo. Achava que me sairia numa boa. Talvez porque quando a gente é mais novo ainda não percebeu que a única coisa que importa são as pessoas que a gente ama. E o trabalho, claro, mas trabalho a gente faz em qualquer lugar. Até na China, en-quanto nenhum fucking bonequinho mudar de cor.
(Imagina só que terríveis os sonhos dos exilados com a Terra natal?).

Achados e Perdidos

Malte 90

Embora as latas de cerveja e refrigerante sejam de alumínio, as argo-las para abrir ainda são aquelas que você puxa e arranca um pedaço, como uma gota de metal, lembram? Mais uma metonimiazinha disto que já está se tornando um chavão para mim: a convivência do mo-derno e do antigo e blablabla...

Cocoricó

Bobeou, os chineses acocoram-se. Com as solas dos pés totalmente no chão. Você olha numa esquina e tem um cara acocorado, como se fosse botar um ovo. Adolescentes fumam assim no shopping, se-nhores descansam assim na praça. Não sei como eles conseguem. Eu tentei aqui no hotel, com as cortinas fechadas, e caí de bunda to-das as vezes.

Movimento underground

Xangai tem mais de dois prédios com mais de 40 andares. E mil em construção. Hoje tem 18 milhões de habitantes, mas em quinze anos a expectativa é de 40 milhões. E a cidade está toda sendo planejada para isso. Ontem vi uma obra de esgoto. Vocês não acreditam no ta-manho do cano que eles estavam enterrando. Nunca vi nada assim em nenhum lugar. Fiquei ali, pasmo, olhando para aquele negócio, e fiz mentalmente uma simples regra de três: pela quantidade de “ma-terial” que eles estão esperando passar por ali, deduz-se a enormida-de de bundas que ainda estão por vir. Os caras pensam em tudo.

Mao

Houve um longo mês durante o qual Xangai foi uma selva de 18 milhões de desconhecidos do outro lado do mundo. Até que o Joca Terron (que vai pro Egito nesse mesmo projeto maluco) e a Isabel (que vai ficar com saudades), me disseram: “Você tem que conhecer o Mao, o cara é uma figura”. E a China imediatamente ficou mais con-fortável.
Mao teve um restaurante chinês na Pamplona por anos e agora voltou para a China. Trocamos e-mails e ele me pediu umas caixas de própolis. Quando me perguntavam, às vésperas da viagem, o que eu ia fazer na China, eu dizia: levar própolis pro Mao. Não era menti-ra, meu único compromisso aqui, coisa a fazer, tarefa, chame do que quiser, era entregar as três caixas marrons com umas abelhas dese-nhadas nas mãos de Mao. Pois ontem liguei pra ele.
Mao veio até meu hotel, me comprou um cartão que serve para metrô, ônibus e táxi, me levou até a casa dele e falou durante horas sobre a cidade, sua vida, a revolução cultural, a China e o mundo, enquanto eu anotava, avidamente, no meu caderninho. Se voltasse para o Brasil imediatamente, já teria material para um livro. Ou mais.

A maior marcenaria da Ásia

O bisavô de Mao era marceneiro no fim do século XIX. Tinha uma pequena oficina. Um dia, um inglês que ouvira falar de seu talen-to e honestidade apareceu por lá e pediu uma poltrona. Não qualquer poltrona. Fez especificações detalhadas: queria madeiras finas, mo-las novas e da melhor qualidade, pregos e parafusos de tais e tais tipos, juntas feitas de sei lá o que -- só faltou pedir direção hidráulica e calotas de molibidênio... Depois do prazo combinado o inglês vol-tou. Olhou a poltrona atentamente e,para a surpresa do marceneiro, tirou uma adaga do bolso e retalhou o assento de couro. Depois de fazer uma autópsia detalhada das entranhas do móvel, concluiu. “Vo-cê é honesto. Fez exatamente o que combinamos, quando poderia ter embolsado o dinheiro e colocado peças usadas dentro. Te faço uma proposta. Vou construir um grande prédio na beira do rio (hoje, o Bund). Quero que você faça toda a mobília.” O marceneiro disse que não tinha como, era só ele e um ajudante naquele cubículo. O inglês falou que não havia problema, a obra demoraria vários anos, ele adi-antaria 30% do valor e o bisavô de Mao poderia abrir uma fábrica, contratar empregados, comprar ferramentas.
Em alguns anos, a Mao Quan Tai era a maior fábrica de móveis de toda a Ásia. Fabricava as mobílias mais elegantes para ingleses e franceses que faziam fortuna da noite pro dia vendendo ópio e com-prando seda, algodão e chá. Seus filhos eram dois playboys, como convém à segunda geração de novos ricos. O avô de Mao estudou em Cambridge e adquiriu costumes europeus. Seu irmão era amigo da primeira dama da China, esposa de Chiang Kai-shek. Um terço das terras ao norte de Xangai era deles.
Na década de 30, os japoneses invadiram Xangai. Em 1938, queimaram a fábrica. A família de Mao teve a segunda maior perda civil da cidade durante a invasão.
O avô de Mao, dandy e fidalgo, teve que trabalhar. Foi para o sul do país, onde ajudou os norte-americanos a fazerem bases da força aérea para o Kuomintang e Chiang Kai-shek usarem na guerra contra os comunistas. Em 1949, Mao Tsé Tung venceu o Kuomin-tang, a família de Mao (o nosso), fugiu para Hong-Kong. Ele, ainda criança, ficou com alguns parentes.
A partir da década de 60, o regime de Mao Tsé Tung foi se fe-chando e começou e perseguir quem tivesse quaisquer relações com o Kuomintang ou fosse simplesmente descendente de empresários, donos de terras ou mesmo profissionais liberais. A revolução de ope-rários e camponeses não queria ser poluída pelo “sangue sujo” dos “sequazes do capitalismo”. Mao era chamado de “filho de cachorro” e tratado a pontapés. (Leiam Cisnes Selvagens, de Yung Chang). Sua mulher, Lilia, que durante todo o colegial fora a melhor aluna da esco-la, foi proibida de entrar na faculdade. O irmão de Mao foi mandado para um campo de reeducação na Manchúria, para aprender com camponeses a ser um verdadeiro revolucionário. Em alguns dias fa-zia 40 graus abaixo de zero.
Com a morte de MaoTsé Tung e a entrada de Deng Xiaoping, no fim dos anos 70, a China começou a se abrir. Mao e Lilia foram para o Brasil, onde ficaram 28 anos. Voltaram há três. Moram num condomínio de classe média alta nos arredores da cidade, onde me receberam com chá, biscoitos, pantufas e uma hospitalidade que so-ma a dos brasileiros com a dos chineses. No fim da tarde fomos a um restaurante e eles me ofereceram um banquete. Uns seis pratos, de camarão ao transcendental (como diria o Daniel Galera, comendo chorizos em Buenos Aires) pato laqueado de Pequim.
Mao é otimista quanto à China. Diz que a vida está melhorando. Todo mundo come, todo mundo tem celular, pode comprar livro, CD, DVD, entrar na internet, reclamar do governo. “Olha as mangas! Os abacaxis!”, dizia ele, apontando as quitandas pela rua, quando íamos para sua casa. “Antigamente não tinha nada disso. As pessoas estão felizes”. Pergunto se não guarda rancor do passado, das persegui-ções e humilhações. Diz que não, que eles têm que olhar para a fren-te. Se o um bilhão e trezentos milhões de pessoas fossem resolver as contas da revolução cultural, Israel e Palestina pareceria uma guerra de Playmobil. Ainda bem que, aparentemente, os outros um bilhão, duzentos e noventa e nove milhões, novecentos e noventa e nove mil e noventa e nove pessoas pensam como Mao.

Café da Manhã

A página do flat na internet alardeava, como um diferencial, ca-fé da manhã “chinese and western”. É verdade, mas digamos que a parte que nos cabe -- a nós, ocidentais --, nesse latifúndio gastronô-mico, é bem restrita. Num cantinho, perto da garrafa elétrica de es-quentar água para o chá, tem uma cestinha com pão de forma, man-teiga (da Nova Zelândia), geléia, umas fatias nanicas de melancia, Tang de dois sabores (duas cores seria mais correto) e iogurte. Já a parte “chinese” se espraia por um mesão: macarrão com carne e ve-getais, linguiças, carne de porco, de frango, bacon, vegetais mistura-dos, cebola, pepino, tofu, bolinhos das mais diversas espécies.
Depois de quatro dias comendo a mesma torradinha com man-teiga (da Nova Zelândia), resolvi fazer uma pequena incursão ao mis-terioso Oriente. Comi uma torrada com pepino, tomate, umas fatias de gengibre e – foi aí que eu errei -- tofu num molho extremamente salgado, que quase inviabilizou meu sincretismo matinal. Também comi um bolinho no vapor, recheado com uma espécie de tutu de fei-jão – doce. (To falando que os chineses são mineiros). Era bom.
Até o fim da viagem, quem sabe, eu não chego no yakissoba?

Os prédios

Assim como não há chinesa avulsa – elas sempre andam em duplas, bem pertinho ou de braços dados --, não há edifício no singu-lar: eles vêm em conjuntos de quatro, seis, oito... Há as enormes tor-res espelhadas, gigantes, de arquitetura futurista, impressionantes. Esses sim, são indivíduos autônomos na paisagem. Mas os prédios residenciais são condomínios gigantes, de quarenta andares. São edifícios feios (não mais feios que os de São Paulo), desses em que se vê mais engenharia do que arquitetura. Lembram de De volta para o futuro II, quando MacFly vai para o futuro em que Biff é o vencedor? Parece um pouco aquilo lá.
Já os prédios Jetsons de vidro são lindos. E o que impressiona é que não estão restritos a uma área da cidade, um centro empresa-rial ou algo do gênero, mas a várias. Em Pudong estão os mais im-pressionantes, mas por toda a cidade você topa com um ou vários deles. O mais impressionante (o mais impressionante, o mais sensa-cional, o mais fantástico, até eu tô me cansando desses adjetivos) de tudo é pensar que essa cidade, como a vemos hoje, brotou do chão da década de 1990 para cá. E no Brasil a gente fica quase uma dé-cada olhando para uns tapumes envergados pela chuva, manchados de xixi de cachorro e com lambe lambes “Compro ouro, prata, plati-na”, esperando a construção de uma padaria...

Amigas

Because love ends, Shirley!

São inúmeras as razões que a vida nos dá para nos fecharmos, mas poucos os motivos para baixar a guarda. Estar sendo pago para “aprender uma cidade” certamente faz parte do segundo grupo.
Esse comecinho mezzo filosófico é só para dizer que, tivesse eu tomado a Nanjin road como paradigma, jamais responderia a um hello novamente aqui na China, receoso de indesejáveis muambas e obscuras “feet massages”. Mas saindo ali de Copacabana, há outros hellos que podem, e devem, ser levados em conta pelo viajante de espírito aberto.
Eu estava perdido anteontem, com o mapa na mão e uma vaga idéia de onde estava na cabeça, quando duas meninas se oferece-ram para me ajudar. Bem, elas não eram de Xangai e logo percebi que ajudar elas não iam, mas queriam dar um dedinho de prosa com o estrangeiro. (Ainda não me decidi se os chineses são mineiros ou baianos, mas ô povim bão de hospitalidade, meu rei). Helen e Shirley (seus nomes americanos, claro) disseram que estudavam inglês na faculdade e nunca tinham a chance de praticar. Estudam em Suzhou, aqui perto (onde era plantado boa parte do chá que a China exporta-va no início do século XX), mas nasceram em pequenas cidades do interior. (Imaginei umas meninas de Lins e Cafelândia que estudas-sem na Unicamp, estivessem passeando por São Paulo e cruzassem um australiano). Usavam umas roupas moderninhas e Shirley levava uma sombrinha roxa, por causa do calor. Quando falei que era do Brasil, elas perguntaram “e onde é que fica?”. No fim das contas elas encontraram o Museu de Xangai para mim e nos despedimos trocan-do e-mails e telefones. (Tive que soletrar A-n-t-o-n-i-o). Hoje saí com elas.
Nos encontramos no mesmo lugar onde dissemos tchau, mas hoje embaixo de uma chuva insistente, grossa e gelada, com um ven-to traiçoeiro que de uma hora para outra fazia os pingos mudarem de direção e os guarda-chuvas virarem do avesso, mostrando despudo-radamente suas anáguas de alumínio.
Eu não sabia se estendia a mão, se as beijava ou só dava um oi, assim, de longe. Preferi a última opção, apenas um Ni Hau sem contato físico e possibilidade de constrangimentos. Fomos para um restaurante ali perto. As duas escolheram tudo, depois de quase vinte minutos de calorosos debates em chinês – de onde saíam vez ou outra para breves consultas como “do you like mushrooms?”, “do you prefer spicy food?”, “what about tofu?” e logo depois voltarem à inter-minável discussão.
Elas pediram e eu disse que queria uma Coca-light. Fizeram uma cara de assombro e trocaram umas cinco ou seis frases com a garçonete, que também parecia surpresa com meu estranho desejo. Shirley me perguntou se queria “ice” nela. Disse que sim, achando que a questão estava resolvida.
O lugar era meio estranhão. Um pouco mais pé sujo do que meu passado Oswald-Equipe-Bahia acharia bacaninha, mas a comi-da, mais uma vez, era fantástica. Primeiro veio uma espécie de sopa com macarrão e legumes, apimentada. Depois um tofu com camarão e molho de tomate (eu me rendo, eu me rendo, tofu é bom...), berinje-la com um molho grosso à base de shoyu e uma carne moída sensa-cional em cima, um macarrão quase transparente e leve, com frango e cebolinha e, como se não bastasse isso tudo, uns bolinhos no va-por com carne e legumes (tipo guiozas). Tudo isso custou 51 yuans, que dá pouco mais de quatro reais para cada um.
Minha coca chegou, não era light e tinha uma bola de sorvete de creme dentro. Céus, não tomava vaca-preta desde o pré-primário e fui reencontrá-la na China? (Se fosse místico, acharia que era um aviso de uma pessoa querida que está um pouco brava comigo e pa-ra quem expliquei, semanas atrás, a existência dessa estranha bebe-ragem).
A conversa começou truncada, com umas perguntas que pare-ciam ter sido tiradas de um livro de inglês, tipo “qual a capital do seu país?”, “como é o tempo lá?”, mas bastaram uns minutos para elas começarem com “quantas namoradas você já teve?” e se contorce-rem em risadinhas. Falei um pouco sobre a minha vida e elas ficaram pasmas. “Você morou com uma mulher sem se casar?! Como vocês são abertos! E se tivessem um filho?!”. Me explicaram que na China não era assim. E não pareciam contrariadas. As duas queriam arru-mar um namorado para casar e ficar junto até o fim da vida. Pergun-taram se eu tinha irmãos e aí é que acharam que eu era mesmo um devasso, de uma linhagem de devassos: “uma irmã de pai e mãe, um irmão de pai e uma irmã nem de pai nem de mãe, mas que o marido da minha mãe teve no outro casamento e veio morar com a gente”.
Lá fora a chuva continuava e, como discutíamos o que fazer, eu disse que não precisávamos ficar andando pela rua, mas podíamos ir para um lugar fechado. “Um lugar fechado?!”, repetiu Helen, seus dois olhinhos agora maiores do que os de um personagens de man-gá. Fiquei tão constrangido que comecei imediatamente a enumerar lugares fechados acima de quaisquer suspeitas: exposição, museu, mercado, shopping, livraria... (Parei antes de falar farmácia ou aca-demia de ginástica).
Saímos andando na chuva e no vento frio em direção a uma casa de chá que, segundo elas, fazia o ritual como convém. A gente levando aquelas lambadas geladas de chuva na nuca, pisando em poças, Shirley vira e grita para mim: “você acredita em amor verda-deiro?!”. Pô, olha a mina... “Sim, acredito, eu amei profundamente as mulheres que namorei”. “Mas se é verdadeiro, é pra sempre. Por que seus namoros terminaram?!” Minha vontade era dizer, olha, Shirley, eu também queria saber, já falei muito disso na análise, talvez eu seja um idiota, talvez toda a minha geração seja idiota e mimada e inca-paz de abrir mão do que é preciso para uma vida a dois, talvez a vida é que seja idiota, mas achei que a situação não era exatamente para grandes especulações, estávamos atravessando a rua, chovia, um ônibus desgovernado vinha em nossa direção, um guarda apitava -- caralho, tô em Xangai falando sobre amor verdadeiro com duas chi-nesas desconhecidas que se chamam Helen e Shriley! --, de modo que, chegando à outra calçada, agarrei firme a mão de Paulo Mendes Campos e falei: beacuse love ends, Shirley. “What?!”, ela perguntou, em meio ao barulho vento, dos ônibus, do guarda. Tive que falar qua-se gritando: Because love ends, Shirley! As duas pararam, olharam sérias para mim. Helen tomou a frente: “not if it’s true”.
Tá, talvez vocês tenham razão. Eu não sei. Não sei mesmo. Eu sei que amei de verdade, depois acabou. A vida acaba, o amor aca-ba, só essa chuva é que parece não ter fim. E lá fomos nós, tomar chá, como se nada tivesse acontecido.


Mais de Shirley e Helen

Água?!

Ainda no restaurante, abandonando a vaca preta (o sorvete ti-nha derretido e estava mais para burro quando foge), disse a elas que queria uma água. “Água?”, perguntou Helen. Ah, péra lá! Até a coca-cola eu entendo o espanto, o país era comunista e tal, mas á-gua?! Qual o problema? “Água gelada?!”, repetiu Helen, como se qui-sesse ter certeza de que havia ouvido certo. É, uma garrafa d’água. As duas fizeram um não convicto com a cabeça. “Água gelada faz mal para o estômago, você não sabia?!”. Mas, Shirley, o mundo todo bebe água gelada!. Eu já tomei até aqui na China. Pode deixar, não vai ser a água que me causará algum problema nessa vida. Pede, por favor? Elas se olharam e, a contragosto, pediram alguma coisa ao garçom. Em um minuto veio uma xícara de água fervendo. “Espe-ra esfriar um pouco e depois bebe. Água gelada, nunca”, disse Helen, passando por cima do fato de ter ignorado meu pedido e com uma cara de quem acaba de tirar um amigo do fundo do poço das drogas.

Barba

À caminho da casa de chá: “Por que você deixa isso aí?”, per-guntou Helen, apontando meu rosto. Isso o que, a barba? “Não sei como chama, isso que você deixa”. Porque eu gosto. Você acha feio? Elas riem. “Não, estrangeiro pode. Mas em chinês é feio.”

Macaco

Os chás são incríveis e uma mulher explica cada um, seus efei-tos e a tradição correspondente. Helen me traduz. Tomamos numas xícaras bem pequenas, de uns 50 ml. Em meia hora me preveni con-tra o câncer, ganhei força, paz, combati dor de dente, ressaca, dor de estômago, ansiedade e até miopia. (A mulher me fez tirar os óculos e colocar o olho dentro da xícara vazia, com o vapor do chá).
Tomamos sete tipos, cada um com sua xícara, seus movimen-tos, sua história. Deliciosos, grande programa. Com calor, tiro meu casaco. As duas olham meu braço e riem dos meus pêlos. “Você pa-rece um macaco!”, diz Shirley. “De que montanha você vem?”, conti-nua Helen, e riem, riem dos meus pêlos. Aproveitando que as barrei-ras do comedimento e discrição foram definitivamente derrubadas – pelo menos no que tange à queratina --, Helen pergunta: “seu cabelo é mesmo dessa cor?”. Claro, Helen, porque você acha que eu pinta-ria? “É muito escuro, quase como o nosso. Estrangeiro é sempre loi-ro”. Juro, eu não pensava nem de longe que essa viagem ia ser tão doida.

Far East

A verdade é que cheguei a Xangai atrasado. Um século. Há cem anos, um missionário escreveu: “se Deus permitir que Xangai perdure, Ele deve desculpas a Sodoma e Gomorra”.
Isso aqui era um verdadeiro faroeste. Ou, com o perdão pelo trocadilho, o far east. Como diz Stella Dong, no livro que comprei aqui esses dias (Shanghai, rise and fall of a decadent city) “Metade oci-dental, metade oriental, metade terra, metade água, nem colônia nem totalmente pertencente a China, habitada por gente do mundo todo mas controlada por ninguém. (...) O estranho fruto de uma união for-çada entre Ocidente e Oriente, essa princesa híbrida nasce de uma bizarra premissa: o direito de uma nação de meter goela abaixo de outra uma poderosa droga”. Ópio.
Os malvados da história são os Ingleses, chamados então pe-los chineses de “os bárbaros ruivos”. Ávidos por negociar com a Chi-na, os ingleses mandaram, em 1793, barcos cheios de seus melho-res produtos. O imperador Chien Lung deu uma olhada e mandou sua lacônica resposta a George III: “Nós temos todas as coisas. Não vejo nenhum valor nas suas mercadorias, incomparáveis às nossas”. Os ingleses queriam chá e seda. Mas fazer o que, se não tinham na-da a oferecer? Não tinham, até que a British East India Company, que monopolizava o comércio com o Oriente, teve a brilhante idéia: ópio.
Trinta anos depois, a droga que estava há tempos banida da china era consumida por doze milhões de pessoas, ou dez por cento da população. Quando o imperador tentou resistir, os comerciantes ingleses convenceram a coroa a dar uma mão. Uma frota fortemente armada atacou Xangai. No dia em que os bárbaros ruivos entraram na cidade, 19 de junho de 1942, os moradores disseram que, “nem um único cachorro em toda a cidade ousou latir”.
A partir daí os ingleses fizeram uma espécie de bolha dentro da China. E logo vieram os franceses, os americanos e muitos outros. Tinham suas próprias leis, suas próprias mansões, adegas, banque-tes, concubinas chinesas e, principalmente, aquela ética mui particu-lar que o homem branco criava ao se estabelecer e ganhar dinheiro longe da mamãe e da esposa. Os relatos são pantagruélicos. Os ca-ras faziam fortunas da noite pro dia, importavam cavalos árabes para corridas e cozinheiros franceses para seus clubes. Gastavam, gasta-vam, gastavam. Bebiam, comiam, se refestelavam. E o dinheiro não parava de jorrar. Quando criticado por um inglês mais consciencioso, um desses aventureiros respondeu: “É meu trabalho fazer fortuna no menor tempo possível. Em dois ou três anos, no máximo, eu espero estar rico e cair fora. E não to nem aí se Xangai inteira desaparecer assim que eu virar as costas, pegar fogo ou for inundada”.
Vai ser irônico se, daqui vinte anos, a China for o país mais po-deroso do mundo e Xangai, hoje seu principal centro econômico, a metrópole mais importante do planeta. Por enquanto, só vejo os olhos arregalados dos bárbaros ruivos nos museus, nas praças e diante do mar de arranha céus modernos. Não estouram mais champanhe pe-las ruas, só bebem mansamente suas garrafinhas de água Evian e tiram fotos com suas câmeras chinesas. Aquele missionário, que Deus o tenha, deve estar contente.

Liberdade de ir e vir

A economia é planejada pelo Estado, a política é ultra-centralizada pelo Partido Comunista e a imprensa censurada. Mas o trânsito de Xangai, meu amigos, goza da maior liberdade da Terra. É a guerra de todos contra todos, a esbórnia total, alguma coisa entre Hobbes e o Aterro do Flamengo: o mais casca grossa dos taxistas cariocas, por aqui, daria aula de direção defensiva.
Os ônibus fecham os carros, que fecham as motos, que fecham as bicicletas, que não hesitam em passar por cima dos pedestres. E quantas bicicletas. Rios sobre duas rodas passam o tempo todo. Não só bicicletas, mas inúmeras variações motorizadas, como mobiletes, lambretas, triciclos, riquixás e outras estruturas para as quais nós, ignóbeis ocidentais, não temos palavras.

Mais táxi

Embora o risco de não chegar vivo ao destino deva ser consi-derado, vale muito a pena sair de táxi por aí. Você cruza a cidade por dez reais. E tem mais: se o taxista cuspir pela janela você tem o direi-to inalienável de não pagar a corrida. Tá escrito numa espécie de re-doma de plástico que separa o banco do motorista do resto do carro. (Para que a redoma? Para nos proteger do cuspe?). O governo está fazendo uma campanha para erradicar a escarrada do país. Querem chegar nas Olimpíadas de 2008 com pelo menos 20% a menos de catarro pelas ruas. (É uma meta realista, disse o encarregado do go-verno). Parece que, em Pequim, já reduziram em 4,8%.
Eu pagava 100 dólares para saber como foi feita essa pesqui-sa.

Assembléias gastronômicas

Tirando algumas reuniões do centro acadêmico da PUC, eu nunca tinha estado num lugar onde a comunicação é absolutamente nula. Eu não entendo nada que eles falam e vice-versa. A mímica (essa arte por mim, até três dias atrás, relegada a mera diversão de praia em dia de chuva e para a qual, agora, acendo velas toda ma-nhã), tem seus limites. Consigo bater asas ou imitar um peixe para saber se aquele negócio é frango ou peixe (juro), mas não há gesto na Terra que lembre coca. E, sabe Deus porque, a palavra coca aqui não significa lhufas para eles.
Os restaurantes costumam ter cardápios bilíngues e, muitas vezes, fotos dos pratos. Mas e para saber o que é “frango cantonês”? E para descobrir se vem com algum acompanhamento? E se dá para uma pessoa ou nove? No way, mistel Plata. O jeito é pedil e tolcel.
Acontece que, sempre que acabo de pedir, vejo que o garçom ou a garçonete fazem uma cara estranha. Eu fico na minha, achando que é paranóia. Mas aí o garçom se junta a outro, começam a falar e olhar para mim. Geralmente, nessa hora, o gerente entra na roda. O pessoal de uma mesa também dá uns pitacos na discussão. Eu fico nervoso, achando que pedi algo como purê de batata para seis e uma travessa de chantily diet. (Vai saber o que era aquele prato chamado “Aurora da primavera...”). Depois de algum tempo eles elegem o Cel-so Amorim do restaurante, o Barão de Rio Branco em horário de al-moço, enfim, um emissário que vem até mim tentar explicar os equí-vocos. Anteontem, após muito esforço, a simpática dona do restau-rante conseguiu me fazer entender que a tal lula de Zhonjhou ou sei lá onde era fria. E me sugeriu outra. (Muito boa, por sinal).
Ontem de tarde consegui tirar todos os atendentes do super-mercado de suas funções só porque pedi um espetinho de frango. Até o cara que etiquetava os produtos gesticulava, brandindo a má-quina etiquetadora, tentando me fazer entender algo que eu, absolu-tamente, não entendia. Uma mulher com pinta de gerente apontava todos os espetinhos da vitrine e dizia: one one one one one! E eu respondia: sim, moça, one! Quero one!. Só depois de uns dez minu-tos entendi: eles não vendiam only one, só a porção com seis. Saí de lá transtornado, sem espetinho e com one suco de tomate.
O ser humano mais sensível, diante dessas pequenas derrotas cotidianas, pode ir se fechando para a vida e acabar no McDonald’s. Não é o meu caso, camaradas. Vim aqui com a missão de conhecer a cidade e não arredarei o pé de meus objetivos. Ainda como aquele espetinho, nem que tenha que comprar one one one one one e mais one.

Pequena fábula

Os andaimes de várias obras são de bambu. Impressionante, eles construindo esses prédios modernésimos trepados em estrutu-ras de bambu! Vejam só que imagem mais óbvia para o crescimento chinês: eles crescem 12% ao ano, entre outras coisas, porque a mão de obra é quase de graça. A economia chinesa é o prédio sendo construído. A mão de obra é o frágil andaime de bambu.
(A realidade, às vezes, trabalha com imagens tão pobres. Po-bres de nós, escritores, que temos de achar uma maneira original de dizer as coisas).

Museu de Xangai

Quando Sócrates parou de chupar o dedo, aquela jarra de bronze na minha frente já tinha 1500 anos. Quando olhamos para a história da China, o nascimento de Cristo não fica mais distante do que o lançamento do Chevete.
Esculturas de 1800 AC impressionam, mas o que mais me em-basbacou foram pinturas e cerâmicas incríveis do século XIII, XIV. Quando penso em 1200 na Europa me vem à cabeça um monge sujo sentado numa banqueta tosca com uma roupa de saco de batatas. E o os chineses fazendo aquelas coisas elaboradíssimas. Outra coisa impressionante: você vê um pratinho de cerâmica da Dinastia Ming de 1426, outro de 1687, e vai indo, até um da dinastia Qing, de 1911. E são iguais. Não há uma evolução técnica, como na arte ocidental.
Outro dia, quando os chineses anunciaram uma lei que pode ser considerada o início da propriedade privada, o presidente da Chi-na, Hu Jintao, foi questionado sobre a abertura política. Ele disse que por ora as coisas permaneceriam como estão, sem mudanças. O a-tual estágio do comunismo, disse ele, deveria durar pelo menos mais uns cinquenta, cem anos. Lembro que o comentarista político brasilei-ro riu, na tv. Eu também. Porra, os caras passaram 600 anos fazen-do o mesmo pratinho, exatamente do mesmo jeito, o que são cin-quenta anos na política?

A Rambla dos Jetsons

Desci a pé a Nanjing Road East, que vai dar no rio Huangpu, no Bund (antiga área francesa). Do outro lado do rio a gente vê o Pu-dong, o bairro das torres futuristas, cartão postal da cidade.
A rua Nanjing é uma espécie de rambla capitalista que desce por vários quarteirões, rasgando um bairro de prédios antigos. Uma artéria que mistura Berrini e Liberdade (depois de três ácidos e dez carreiras) construída no meio de um mar de Lapa, só que mais den-sa, mais misteriosa e mais interessante.
De vez em quando eu saía da Nanjing para uma dessas trans-versais. Pelas estreitas calçadas, em frente a uns quase cortiços, homens jogam baralho, em meio à fumaça das panelas de óleo que fritam bolinhos e das churrasqueiras que fazem espetinhos de lula, polvo, frango, pato e outras formas de vida não identificadas. Do na-da saem uns corredores que dão para umas espécies de vilas cheias de casas, roupas penduradas em varais e becos suspeitos, onde há oitenta anos chineses com olheiras profundas e marinheiros bêbados deviam cair pelos cantos fumando ópio.
Por todo lado, lojas das mais diversas quinquilharias: só de ali-cates, só de correntes, só de trinco de porta, de isopor... Lembra um pouco aquela parte de Pinheiros abaixo do Largo da Batata. Tudo su-jo, misterioso, com cara de crime. Aí você volta pra Nanjing e está novamente no futuro.
Andei mais de uma hora. Por todo o percurso você passa por torres enormes e modernas, umas que se contorcem, refletindo a ci-dade disforme, outras com bolas no meio, outras com espetos, Jet-sons mesmo.
A impressão que dá é que, depois da morte do Mao e da aber-tura econômica, em 1978, com Deng Xiaoping, a China olhou para o mundo capitalista e disse: truco, marreco! Xangai é a manilha, que o país bate na testa do Ocidente enquanto ri, crescendo 12% ao ano.

O Haiti não é aqui

Xangai é a cidade que mais cresce do país que mais cresce no mundo. 40% do cimento mundial vem para a China. Os guindastes têm holofotes para que as obras não parem de noite. (Dizem que é a cidade com mais guindastes da Terra). Se a China se tornar a grande potência do século XXI, como dizem por aí, Xangai será o novo cen-tro mundial. É bom ficar amigo do pessoal. Vai que eu não sei e o Caxambu é Donald Rumsfeld do novo milênio?


Mais Caxambu

Quando perguntei seu nome, Caxambu me disse: English or chinese? É comum o cara se chamar Xiu Lun Chang mas, para os gringos, apresentar-se como Steve, John ou Bob. Facilita as coisas. Caxambu, por exemplo, chama-se Brin.
Meu amigo Rodrigo passou quarenta dias aqui na China. Ne-nhum chinês consegue falar o érre, de modo que ele virou Lodligo. Até que um patrício (da pátria de cá) disse pra ele: cria um nome em chinês. Lodligo pensou um pouco e escolheu algo cuja sonoridade lhe pareceu adequada. Pelo que ouvi dizer, Pin Gu Lin fez o maior sucesso na República Popular da China.


Hello, where are you from?

Descendo a Nanjing você é constantemente abordado por gen-te querendo vender mercadorias contrabandeadas. Uma menina dis-se hello e começou a andar comigo. Tinha uma cara de quem ia me oferecer alguma coisa ilegal. Falava “where are you from? We are walking together! We are walking together!” Eu respondia que sim, sem dúvida nenhuma, ninguém poderia negar, estávamos walking together. Fiquei esperando que tipo de contravenção ela ia me pro-por. Depois de mais de um quarteirão com seu papinho de walking together e we are friends ela me olhou com cara de safada. Pensei em ópio, seda, concubinas, lança mísseis terra-ar. Ela me disse: “buy t-shirt? Buy t-shirt?” Esperava mais do misterioso Oriente...

No quarteirão de baixo um cara cola do meu lado, mesma cara de malandro:
-- T-shirt?
-- No, thank you.
-- Watch?
-- No, thank you.
-- Louis Vuitton? -- disse ele, já abrindo um sorriso.
-- No, thank you.
-- A beer? It`s hot! A beer?
-- No, thank you.
-- Massage? – agora o sorriso ficou mais malicioso, de quem está quase entregando o ouro.
-- No, thank you.
Senti que ele começava a ficar impaciente.
-- Feet massage?
-- No, thank you.
-- Ok, where do you want a massage? – falou, quase piscando, caso o gringo aqui não entendesse a mensagem. Ou a massagem? (O meio é a massagem). (Desculpa, escapou).
-- No, thank you.
O cara perdeu a paciência:
-- Last offer, one woman, one hour, want?
-- No, thank you.
Ele saiu andando rapidinho. Ainda ouvi sua voz, logo atrás, abordan-do uma nova vítima: t-shirt?

Aqui e aí

Às vezes parece tudo igual, às vezes não tem nada a ver. No rádio do supermercado toca música pop chinesa e parece que basta mudar a língua e ficaria igualzinho Sandy e Junior. Quando entra a voz empolgada do locutor e você não entende o que ele fala, dá a impressão que, pelo tom, ele pode soltar a qualquer momento um empolgado “Transamérica loucura total!” ou qualquer outra dessas bobagens. Até que você dá de cara com o aquário de sapos vivos ou o pote de cabeças de pato fritas e se lembra que não está no Mambo de Pinheiros, mas num mercado de Xangai. (Vai precisar de muito amaciante Comfort para catequizar esse pessoal com seis mil anos de história).

Cool

Não se vê pelas ruas chineses tão descolados como os japone-ses. Apesar das torres, do crescimento de dois dígitos e tudo mais, parece que eles ainda não acharam o ponto, esteticamente, do capi-talismo. Talvez sejam como adolescentes que cresceram rápido de-mais e ainda andam um pouco desajeitados. O vj da tv, os adoles-centes de mãos dadas pela calçada e a menina de polainas rosa e óculos escuros que passa de bicicleta ainda lembram um pouco pri-mos do interior que não dominam inteiramente os códigos da cidade grande. Mas estou aqui há menos de 24 horas, são impressões pre-cipitadas. (Bom, mesmo depois de um mês, ainda serão).

Primeiras impressões

Foram 27 horas de viagem. Eu não demorava tanto tempo as-sim para chegar num lugar desde aquelas intermináveis idas de ôni-bus para a Bahia, na adolescência. O outro lado do mundo é real-mente longe. Só me dei conta mesmo do óbvio depois de cruzar o Atlântico, descer em Paris e perceber que ainda estava na metade do caminho. Então é isso – pensei --, o aeroporto Charles de Gaule é como se fosse assim o Resendão da Dutra, o Graal Itatiaia ou a pa-rada de Itabuna. Só que em vez de esfirra você come um croissant e em vez de um “tudo de bom, meu rei”, você recebe um resmungo de uma provável eleitora do Sarkozy. Mas vamos ao que interessa.
Cheguei no hotel em Xangai 29 horas depois de embarcar em São Paulo e recebi a notícia que o quarto só estaria pronto em uma hora. Saí andando pela cidade. Não dá para dar uma panorâmica porque é muita informação e só andei por uma rua, a do meu hotel. Mas foi o suficiente para perceber que o negócio é mais complicado do que eu imaginava....
Entrei num supermercado e fiquei uns dez minutos babando numa espécie de estande, desses tipo Promocenter, que só vendia pato. Pato assado, pato frito, pato a passarinho, língua de pato, pé de pato e outras coisas de pato que não sei quais são. Depois subi para outros andares e vi o que já tinha lido no livro China, o renascimento do Império, de Cláudia Trevisan: aquários e mais aquários com pei-xes vivos, moluscos se mexendo, sapos e tartarugas de todos os ti-pos, cobras, mariscos de todas as raças, credos e cores. Umas con-chas cuspiam água de vez em quando, num jato fino, mas potente. Tem também camarões secos, como no nordeste. Se arrumar farinha de mandioca já dá para fazer um vatapá. As coisas são mais apetito-sas do que nojentas. Na saída, um garoto de uns 20 anos parou do meu lado na escada rolante e disse: hello. Fiquei pensando: que que esse cara quer comigo? Será que ele tá me chavecando? Mas deixei de ser besta e puxei papo. Seu nome, juro, é Caxambu. Fiz ele repe-tir umas quatro vezes e é isso mesmo. Não sei se se escreve Kai Chang Bou ou Ca Xan Bug, mas fala Ca-xan-bu. Comecei a explicar que in Brasil we have a town anda a mineral water..., mas desisti. Ele perguntou de onde eu era e Brasil não remeteu a nada remotamente conhecido. Mas foi só eu falar Lonaldô que Caxambu abriu o sorrisão e ficou meu amigo. Dei meu telefone para ele e ele me indicou um restaurante. Na base da mímica, consegui comer pato com uns le-gumes. O mais difícil foi pedir a Coca. Quando o garçom entendeu, disse algo que me pareceu google ou baba, qualquer coisa, menos coca. Não adianta. Nem no hotel consigo entender e me fazer enten-der. O negócio é ficar amigo do Caxambu e sair por aí com ele de in-térprete.
Acabei de tomar banho, tomei uma google ou baba light e ago-ra vou sair andando de novo. É tudo tão diferente que to me sentindo em casa. Depois escrevo com mais calma.

Ps. Todos aqueles que me encomendaram as mulheres do Wong Kar Wai (é assim?): ainda não achei nenhuma, mas cruzei com algumas que parecem ser pelo menos primas. Qualquer novidade eu aviso.

Ps 2. Vi o filme novo do Rocky no avião. É, Rocky Balboa, ele mesmo. Tá, tá, eu admito que a viagem para longe, as horas mal dormidas, o efeito desses psicotrópicos que fazem rabino roubar gra-vata e jumbofóbico dormir que nem criancinha podem ter influencia-do, mas digo sem medo de errar: filmão. Até chorei no final.
Engraçado, enquanto o mundo foi ficando horroroso nas últimas décadas, os machões americanos foram ficando fofos? Acho que Clint Eastwood e Silvester Stalone andaram fazendo análise. Ou yo-ga? Agora to no aguardo de um filme de Charles Bronson sobre o a-feto.

Seja bem vindo!

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