TORÓ
(publicado no Estadão)
A descarga elétrica é um chicote de 27.700 graus -- quatro vezes a temperatura na superfície do sol. O ar em torno desloca-se causando o estrondo, que viaja por entre os prédios a 340 metros por segundo. O homem por trás dos óculos e do bigode volta os olhos para cima. A nuvem preta começa a seiscentos metros de suas pupilas e só termina catorze quilômetros depois, mas de onde ele está tudo o que vê é o céu tão preto que é como se a Terra tivesse sido engolida por um cachorro. As três moças de salto-alto e crachá dão uns gritinhos, excitadas com o próprio susto. O velho da banca guarda o display da mulher pelada. Os dois frentistas correm para estacionar os carros recém-lavados sob a parte coberta do posto. O vendedor de abacaxis recolhe as fatias dispostas sobre a barraquinha e as põe no isopor envolto por fita marrom. No ponto de ônibus coberto há uma discreta migração da periferia para o centro. Os estudantes de uniforme e i-pod passam correndo e gritando pela calçada – mas talvez corressem e gritassem do mesmo modo sem trovão ou com chuva de canivetes. O vira-lata solta o osso, fareja o ar espesso com pompa de especialista e sai trotando. O homem por trás dos óculos e do bigode atormenta-se com a lembrança de uma janela longe dali: fechou? Não fechou? Agora é tarde, pois a primeira gota cai sobre o teto do posto, a segunda em cima do ponto de ônibus, a terceira na testa de uma das moças, a quarta estatela-se no asfalto e a chuva começa como no pior pesadelo de Asterix: o céu desabando sobre nossas cabeças. As moças correm a toda velocidade que os saltos permitem. O homem por trás dos óculos e do bigode, convencido de que não fechou a janela, arrasta seu arrependimento para debaixo do ponto, onde umas quinze pessoas se acotovelam -- embalde, pois a água vem de tudo quanto é canto: de cima pra baixo, de baixo para cima, de um lado pro outro; jorra de dentro dos bueiros entupidos, desce em cachoeiras pelas calhas; sacos de lixo e garrafas pet competem no rafting do meio fio. Em cinco minutos não haverá mais ninguém sob o ponto. Em quinze, o vendedor de abacaxis, com água pelo joelho, abandonará o isopor. Em vinte, os frentistas desistirão da trincheira de panos e pneus, a água já entrando pelos escapamentos. Em vinte e nove minutos a chuva haverá terminado. As moças de crachá se secarão com os guardanapos de uma padaria e o vira-lata tremerá dentro de um fogão abandonado no terreno baldio. Em duas horas o homem ajeitará os óculos e torcerá a ponta do bigode ao contemplar sua sala. O toró será a principal notícia do Jornal Nacional, mas quem mora por aqui prescindirá das estatísticas, bastará olhar pela janela para se dar conta do estrago: é como se a cidade tivesse sido roída por um cachorro.
A descarga elétrica é um chicote de 27.700 graus -- quatro vezes a temperatura na superfície do sol. O ar em torno desloca-se causando o estrondo, que viaja por entre os prédios a 340 metros por segundo. O homem por trás dos óculos e do bigode volta os olhos para cima. A nuvem preta começa a seiscentos metros de suas pupilas e só termina catorze quilômetros depois, mas de onde ele está tudo o que vê é o céu tão preto que é como se a Terra tivesse sido engolida por um cachorro. As três moças de salto-alto e crachá dão uns gritinhos, excitadas com o próprio susto. O velho da banca guarda o display da mulher pelada. Os dois frentistas correm para estacionar os carros recém-lavados sob a parte coberta do posto. O vendedor de abacaxis recolhe as fatias dispostas sobre a barraquinha e as põe no isopor envolto por fita marrom. No ponto de ônibus coberto há uma discreta migração da periferia para o centro. Os estudantes de uniforme e i-pod passam correndo e gritando pela calçada – mas talvez corressem e gritassem do mesmo modo sem trovão ou com chuva de canivetes. O vira-lata solta o osso, fareja o ar espesso com pompa de especialista e sai trotando. O homem por trás dos óculos e do bigode atormenta-se com a lembrança de uma janela longe dali: fechou? Não fechou? Agora é tarde, pois a primeira gota cai sobre o teto do posto, a segunda em cima do ponto de ônibus, a terceira na testa de uma das moças, a quarta estatela-se no asfalto e a chuva começa como no pior pesadelo de Asterix: o céu desabando sobre nossas cabeças. As moças correm a toda velocidade que os saltos permitem. O homem por trás dos óculos e do bigode, convencido de que não fechou a janela, arrasta seu arrependimento para debaixo do ponto, onde umas quinze pessoas se acotovelam -- embalde, pois a água vem de tudo quanto é canto: de cima pra baixo, de baixo para cima, de um lado pro outro; jorra de dentro dos bueiros entupidos, desce em cachoeiras pelas calhas; sacos de lixo e garrafas pet competem no rafting do meio fio. Em cinco minutos não haverá mais ninguém sob o ponto. Em quinze, o vendedor de abacaxis, com água pelo joelho, abandonará o isopor. Em vinte, os frentistas desistirão da trincheira de panos e pneus, a água já entrando pelos escapamentos. Em vinte e nove minutos a chuva haverá terminado. As moças de crachá se secarão com os guardanapos de uma padaria e o vira-lata tremerá dentro de um fogão abandonado no terreno baldio. Em duas horas o homem ajeitará os óculos e torcerá a ponta do bigode ao contemplar sua sala. O toró será a principal notícia do Jornal Nacional, mas quem mora por aqui prescindirá das estatísticas, bastará olhar pela janela para se dar conta do estrago: é como se a cidade tivesse sido roída por um cachorro.
18 Comments:
véio, vai ser bão assim lá na porte de parrí.
Oi Antônio :D
é realmente triste que a chuva que eu adoro tanto tenha que ter sido retratada dessa maneira hoje em dia.
Tive saudade de ver suas crônicas no final da Capricho toda quinzena, e vim matá-la aqui.
Criei a liberdade de colocar o seu blog nos favoritos do meu ^^
beiijos.
Você melhora a cada dia e esse texto me surpreendeu, acho que foi um dos mais bonitos seus que já li.
( Bem- te-vi que saiu na Capricho continua sendo meu favorito)
Beijos.
Visita o blog?!?!
A chuva é a maior quebradora de paradigmas da pós modernidade.
De repente todo mundo vai pra porta das lojas ver a chuva chover.
A chuva, dirão os climatologistas, é um fenômeno precipitado.
estou tão frustrada, mas TÃO frustrada de não conseguir te enviar e-mails (ou de você não os responder, hmpf!) que num ato de retaliação, estou comentando sem ter lido o post.
(mas juro que vou, asssim que acabar de publicar aqui minha crise existencial de "será que ele se esqueceu de mim?")
hoje, às 22:00, se minha conexão permitir, estarei sentadinha em frente ao pc, pipoca na mão e tudo !
poxa, esquece de mim não... super saudade de conversar contigo, sabia?
(li, e voltei pra falar sério.)
eu sempre me surpreendo contigo. sempre. desde meus quinze anos. e cada dia ME admiro mais por essa habilidade incrível de escolher os ídolos certos. rs
brincadeiras à parte, já cansei de dizer o quanto te acho fantástico né? em cada linha de cada texto. seja falando à gente grande, à gente pequena, à gente média, à si mesmo; seja quando fala sério, quando brinca, quando brinca falando sério, quando fala sério brincando...
eu sempre me surpreendo com "essa coisa" que você tem, essa habilididade incrivel de lançar palavras (assim, como quem não quer nada) e antes que nós - leitores - percebamos, estão lá as verdades, as idéias, os afagos, os desabafos, os pedaços de cada um de nós. Foi o que me fez fã; mesmo que com 15 anos eu não entendesse lá muito bem suas entrelinhas.
ali - quando citou drummond meio disfarçado - não sei por quê, mas me lembrei do seu pai. e do meu. e duma coisa que te disse há um tempo atrás mas que você já deve ter esquecido, rs.
ah, ler você é sempre um privilégio. sempre.
obrigada (:
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Foi em SP que aprendi a usar guarda-chuva. Recém-chegada de BH, encharcada debaixo de um ponto de ônibus, um paulista genuíno brincou comigo: "Pelo visto, vc não é daqui". Tive que comprar uma bolsa maior, pois aqui a chuva pode dar as caras em pleno meio-dia ensolarado. Beijos, já fiquei fã do teu blog.
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E em Paris, um homem tropeçara no guarda-chuva e blasfemará com o céu porque a chuva só ameaçou cair .
Caraaan *-* adorei o jeito que tu falou sobre a inundação. Não ficou aquela coisa óbvia!
bjuu
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Olha Antonio, eu morro de medo de chuva, mas seu texto ficou muito bom!
Sensacional. Nesta madrugada ostracista, em Natal-RN, seu texto me fez ampliar os horizentes, principalmente sobre o efeito social da expressão Terra da Garoa. É algo q as estatisticas realmente não podem dizer, pois não se tratam de numeros, mas sim de feeling.
Grande Abraço
Antônio Prata!
Eu, como Geógrafa de corpo, alma e etc. confesso que sua narrativa foi muito mais envolvente, complexa, simples, molhada, seca! rs! Suas palavras foram muito mais chamativas que aquelas explicações dramáticas da ciência.
Se os olhos reaprendessem a chorar (hj em dia)seria um novo dilúvio. Eu sou fã das sua palavras!
É bom saber que vc vai ler esse comentário, que vc nem me conhece, mas que eu te conheço desde a minha adolescência (ontem! rs). Eu cresci, minhas idéias se expandiram, minha alma também! Continuei procurando seus escritos, eles tem um quê de mágicos!
Take care!
Meu sonho de consumo do dia de hoje é seu msn! rsrsr! Ah, essa modernidade... O novo já nasce velho...
É 10!
essa é da série: Leio, vesualizo, sinto.
Ótimo!
Este é um testemunho que eu direi a cada um que ouça. Eu tenho casado quatro anos e no quinto ano do meu casamento, outra mulher teve que levar meu amante longe de mim e meu marido me deixou e as crianças e nós sofremos por dois anos até que eu encontrei um post onde este homem Dr.Wealthy ter ajudado alguém e eu decidi dar-lhe uma tentativa de me ajudar a trazer o meu amante de volta para casa e acreditar em mim eu só enviar minha foto para ele e do meu marido e depois de 48 horas como ele me disse, eu vi um carro dirigiu para o casa e eis que era meu marido e ele veio para mim e para as crianças e é por isso que eu estou feliz em fazer com que cada um de vocês pareça conhecer este homem e ter seu amante de volta para o seu eu. Seu email: wealthylovespell@gmail.com .OU VOCÊ TAMBÉM PODE ADICIONAR ELE SOBRE O WHATSAPP USANDO ESTE NÚMERO DE CELULAR 2348164728160.
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