SORVETE DE CHEESECAKE
(PUBLICADO NO ESTADÃO)
Diz a lenda que Joe Kennedy, pai do presidente, pressentiu o crash de 29 ao receber dicas de investimento do garoto que lustrava seus sapatos. Se até o engraxate estava especulando -- especulou o especulador -- era porque a especulação já tinha ido muito mais longe do que qualquer especulador poderia ter especulado.
Eu, modéstia à parte, também farejei que algo ia mal na economia alguns meses atrás, ao entrar numa grande vídeo-locadora e dar de cara com um jogo de panelas (linha Firenze, revestimento de teflon), seis pares de meias brancas (made in China, dez reais) e uma seção inteira dedicada às lingeries. Quando você acha calcinhas onde buscava Hitchcock, só pode concluir que o mercado está completamente desregulado, não?
Na verdade, eu suspeitava que as coisas andavam confusas desde uma remota tarde no século XX em que a banca do seu Arlindo passou a vender água de coco. Em pouco tempo o jornaleiro comprou um freezer vertical e começou a oferecer também cervejas, refrigerantes e bebidas isotônicas, onde antes havia apenas jornais e revistas, abalando assim um dos pilares de meu pensamento infantil -- a crença de que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa.
Preocupado com a quebra de meus paradigmas, comecei a buscar alguma explicação no papo dos adultos. Falavam sobre a globalização, o fim das fronteiras e a abertura dos mercados. Era isso: seu Arlindo estava abrindo um mercado. E não só ele, percebi, ao reparar no que acontecia com os postos de gasolina: ali, naquela casinha onde antes funcionava uma borracharia, com uma banheira de água imunda e um pôster da Maria Zilda arrancado de uma Playboy de 85, passaram a vender lasanhas congeladas, papel higiênico, canetas hidrocor e outros itens de primeira, segunda ou terceira necessidade.
O que era o tal fim das fronteiras só entendi nos anos 90, não com desmantelo da Iugoslávia, mas ao deparar-me com um saco de batatas-fritas sabor churrasco. Depois vieram o sorvete de cheesecake, o chocolate de cookies e a pizza de cachorro-quente (e ainda crêem que o mercado se regula?!), mas nem me abalei: já estava claro que uma coisa poderia ser outra coisa e, como vimos nos últimos meses, era possível todas as coisas transformarem-se em coisa nenhuma.
Quando entrei na locadora, portanto, e deparei-me com panelas, meias e calcinhas, entendi que aquele era o apogeu do movimento iniciado lá atrás com os cocos do seu Arlindo e que logo viria a débâcle. O pai do Kennedy, em 29, vendeu as ações e comprou terras e imóveis. Eu, dentro de minhas limitações, apenas aluguei um filme e levei um daqueles pacotes com seis meias, pela incrível bagatela de dez reais. Meias brancas, médias e lisas, como convém. Afinal, em momentos de incerteza, temos que nos refugiar na tradição.
Diz a lenda que Joe Kennedy, pai do presidente, pressentiu o crash de 29 ao receber dicas de investimento do garoto que lustrava seus sapatos. Se até o engraxate estava especulando -- especulou o especulador -- era porque a especulação já tinha ido muito mais longe do que qualquer especulador poderia ter especulado.
Eu, modéstia à parte, também farejei que algo ia mal na economia alguns meses atrás, ao entrar numa grande vídeo-locadora e dar de cara com um jogo de panelas (linha Firenze, revestimento de teflon), seis pares de meias brancas (made in China, dez reais) e uma seção inteira dedicada às lingeries. Quando você acha calcinhas onde buscava Hitchcock, só pode concluir que o mercado está completamente desregulado, não?
Na verdade, eu suspeitava que as coisas andavam confusas desde uma remota tarde no século XX em que a banca do seu Arlindo passou a vender água de coco. Em pouco tempo o jornaleiro comprou um freezer vertical e começou a oferecer também cervejas, refrigerantes e bebidas isotônicas, onde antes havia apenas jornais e revistas, abalando assim um dos pilares de meu pensamento infantil -- a crença de que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa.
Preocupado com a quebra de meus paradigmas, comecei a buscar alguma explicação no papo dos adultos. Falavam sobre a globalização, o fim das fronteiras e a abertura dos mercados. Era isso: seu Arlindo estava abrindo um mercado. E não só ele, percebi, ao reparar no que acontecia com os postos de gasolina: ali, naquela casinha onde antes funcionava uma borracharia, com uma banheira de água imunda e um pôster da Maria Zilda arrancado de uma Playboy de 85, passaram a vender lasanhas congeladas, papel higiênico, canetas hidrocor e outros itens de primeira, segunda ou terceira necessidade.
O que era o tal fim das fronteiras só entendi nos anos 90, não com desmantelo da Iugoslávia, mas ao deparar-me com um saco de batatas-fritas sabor churrasco. Depois vieram o sorvete de cheesecake, o chocolate de cookies e a pizza de cachorro-quente (e ainda crêem que o mercado se regula?!), mas nem me abalei: já estava claro que uma coisa poderia ser outra coisa e, como vimos nos últimos meses, era possível todas as coisas transformarem-se em coisa nenhuma.
Quando entrei na locadora, portanto, e deparei-me com panelas, meias e calcinhas, entendi que aquele era o apogeu do movimento iniciado lá atrás com os cocos do seu Arlindo e que logo viria a débâcle. O pai do Kennedy, em 29, vendeu as ações e comprou terras e imóveis. Eu, dentro de minhas limitações, apenas aluguei um filme e levei um daqueles pacotes com seis meias, pela incrível bagatela de dez reais. Meias brancas, médias e lisas, como convém. Afinal, em momentos de incerteza, temos que nos refugiar na tradição.
20 Comments:
A melhor análise que já li sobre a tal crise. Adorei.
PS: Coicidentemente, sempre encontro seus textos nos lugares mais inusitados, como em um salão de beleza, que só tem revista Caras, pego um jornal que estava sendo usado na cabeça de uma senhora para fins estéticos e me deparo com sua crônica. É a crise.
e onde é que tudo vai dar, moço?
Fantástico! Adorei!
Pois é... o capitalismo provando do seu veneno.
pois é, mas mudando de assunto, tô lendo o livro do seu pai, e crônica vai, crônica vem, tá lá você...o filho Antonio...muito legal. Filho de peixe, peixinho é...né?
Genial!!
Meu, sair de um lugar com um Hitchcock, um Almodovar e umas cacinhas, seria a glória! afinal vai saber com quem vc vai assistir o filme ( no meu caso que sou fêmea que faz uso de calcinha, uma espécie em extinção)
no mais, adorei seu blog... achei hj aliás...não li tudo, mas lerei!
beijo!
"Meias brancas, médias e lisas, como convém. Afinal, em momentos de incerteza, temos que nos refugiar na tradição."
Muito bom, muito bom!
Achei muito legal encontrar o seu blog dando sopa por aí... Adoro o que você escreve!
(Aliás, isso é culpa de seu pai... Quando o meu assinava o Estadão, há alguns anos, e o seu escrevia lá todas as quartas, eu passava a manhã no colégio ansiosa por chegar logo em casa e poder ler o meu querido Mário Prata... E muito me alegra saber que talento é sim genético^^)
Beijos, querido!
=**
ai seu blog tem tantos comentários de elogio que fica até chato!
o seu Arlindo e o mesmo do "Douglas"?
Não acredito que encontrei teu blog!
Tenho que confessar que eu sempre "roubava" a Capricho da minha irmã só pra ler os seus textos, e quando ela me disse que você não escreveria mais me senti um pouco abandonada. =P
E sobre o texto, só posso dizer que a tua maneira de falar sobre o que quer que seja é completamente diferente de tudo o que se vê por aí.
Beeeeeeeeeijos
quando eu era criança, a gente comprava pão na padaria, revista na banca de revista (acho que eu chamava de jornaleiro), tecidos nas casa pernambucanas e gravava os filmes que passavam na tv no vhs.
hoje vou no wal-mart e compro tudo. cadê as boas casas do ramo? ninguém tem mais ramo, ninguém tem mais opinião. o que aconteceu com a loja onde eu comprava partituras pro piano?
ah... e acho que se gravar o filme da tv vou ser acusada de pirataria, né?
Ahahahahahahahahaahahahaah!
Bem que tu fez, em manter um estoque extra de meias... vai saber, né?
Adoro o que vc escreve!
Bjs!
Agora entendi o porquê da loja de CDS do shopping da minha cidade estar vendendo brinco, bolsa, blusinha e até chaveiro hehehe
AP,
Já o visito há algum tempo, mas este texto, as metáforas, tudo, está excelente! Tinha de deixar registrada minha admiração por tão belo texto!
Abraço,
TD.
This comment has been removed by the author.
Engraçado é o poster da maria Zilda permanecer intacto esse tempo todo... será que o botox ja vinha nas folhas da playboy e não sabíamos?!
Maravilhosa escrita <3
Genial!
Este é um testemunho que eu direi a cada um que ouça. Eu tenho casado quatro anos e no quinto ano do meu casamento, outra mulher teve que levar meu amante longe de mim e meu marido me deixou e as crianças e nós sofremos por dois anos até que eu encontrei um post onde este homem Dr.Wealthy ter ajudado alguém e eu decidi dar-lhe uma tentativa de me ajudar a trazer o meu amante de volta para casa e acreditar em mim eu só enviar minha foto para ele e do meu marido e depois de 48 horas como ele me disse, eu vi um carro dirigiu para o casa e eis que era meu marido e ele veio para mim e para as crianças e é por isso que eu estou feliz em fazer com que cada um de vocês pareça conhecer este homem e ter seu amante de volta para o seu eu. Seu email: wealthylovespell@gmail.com .OU VOCÊ TAMBÉM PODE ADICIONAR ELE SOBRE O WHATSAPP USANDO ESTE NÚMERO DE CELULAR 2348164728160.
Amei sua escrita! <3
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