ZONA DO AGRIÃO
(Publicado no estadão)
Parado, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, o sujeito atravancava minha passagem. Ia enfiá-la no pote de ervilhas, arremeteu, pousou-a na bandeja de beterrabas, levantou uma rodela, soltou-a, duas gotas vermelhas respingaram no talo de uma couve-flor.
Fosse mais para trás, lá pela travessa do agrião, eu poderia ultrapassá-lo e chegar aos molhos a tempo de colocar azeite e vinagre antes que ele se aproximasse, mas da beterraba aos temperos é um passo e então seria eu a atrapalhar sua cadência. (Segundo a etiqueta não escrita dos restaurantes por quilo, a ultrapassagem só é permitida se não for reduzir a velocidade do ultrapassado -- o que seria equivalente a furar a fila).
Tudo é movimento, dizia Heráclito; o mundo gira, a lusitana roda, anunciava a televisão: só eu não me mexia, preso diante da cumbuca de grãos de bico com atum. Fiquei irritado. Aquele homem hesitante estava travando o fluxo de minha vida, dali para frente todos os eventos estariam quinze segundos atrasados: da entrega desta crônica ao meu último suspiro.
Limpei a garganta, o sujeito olhou para mim e foi então que o inusitado se deu: ele sorriu. Meu mau-humor foi expulso pela vergonha. Ali estava eu, buzinando mentalmente, ultrajado pela subtração de um punhado de segundos.
Qual a pressa? Só mandaria a crônica no dia seguinte, o último suspiro, quanto mais distante, melhor, esse foi um ano bom, construí uma churrasqueira, terminei um livro, passeei por aí com meu amor, já estamos quase em novembro, logo começam a ligar os amigos para nos encontrarmos antes que o ano acabe, ou que o mundo acabe, dependendo do que acontecer com a economia -- e mesmo que venha a hecatombe, não seria mais uma razão para trabalharmos em paz na composição de nossa salada? Lá fora havia chefes e planilhas Excel, carretas viradas e possibilidade de pancadas isoladas à tardinha; talvez haja recessão em 2009 e há uma chance em 50 milhões de que a Terra seja engolida por um buraco negro quando ligarem o acelerador de partículas na Europa, mas ali estávamos nós, dois homens em horário de almoço, decidindo entre dezenas de possibilidades de agraciar nossas papilas gustativas nos próximos minutos. No fim das contas a vida é isso aí, escolher entre ervilhas e beterrabas, antes que chegue o último suspiro e sejamos nós o alimento de outras criaturas. Qual a pressa?
O sujeito serviu-se de três rodelas de beterraba e passou-me a colher. Eu sorri, ele sorriu de volta. Pensei em desejar-lhe feliz natal, mas era cedo, dizer bom apetite, mas era tarde: a mulher atrás de mim limpou a garganta, dando a entender que se eu não fosse me servir de nada era melhor sair da frente, em vez de ficar ali, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, a contemplar os legumes e atravancar sua passagem.
Parado, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, o sujeito atravancava minha passagem. Ia enfiá-la no pote de ervilhas, arremeteu, pousou-a na bandeja de beterrabas, levantou uma rodela, soltou-a, duas gotas vermelhas respingaram no talo de uma couve-flor.
Fosse mais para trás, lá pela travessa do agrião, eu poderia ultrapassá-lo e chegar aos molhos a tempo de colocar azeite e vinagre antes que ele se aproximasse, mas da beterraba aos temperos é um passo e então seria eu a atrapalhar sua cadência. (Segundo a etiqueta não escrita dos restaurantes por quilo, a ultrapassagem só é permitida se não for reduzir a velocidade do ultrapassado -- o que seria equivalente a furar a fila).
Tudo é movimento, dizia Heráclito; o mundo gira, a lusitana roda, anunciava a televisão: só eu não me mexia, preso diante da cumbuca de grãos de bico com atum. Fiquei irritado. Aquele homem hesitante estava travando o fluxo de minha vida, dali para frente todos os eventos estariam quinze segundos atrasados: da entrega desta crônica ao meu último suspiro.
Limpei a garganta, o sujeito olhou para mim e foi então que o inusitado se deu: ele sorriu. Meu mau-humor foi expulso pela vergonha. Ali estava eu, buzinando mentalmente, ultrajado pela subtração de um punhado de segundos.
Qual a pressa? Só mandaria a crônica no dia seguinte, o último suspiro, quanto mais distante, melhor, esse foi um ano bom, construí uma churrasqueira, terminei um livro, passeei por aí com meu amor, já estamos quase em novembro, logo começam a ligar os amigos para nos encontrarmos antes que o ano acabe, ou que o mundo acabe, dependendo do que acontecer com a economia -- e mesmo que venha a hecatombe, não seria mais uma razão para trabalharmos em paz na composição de nossa salada? Lá fora havia chefes e planilhas Excel, carretas viradas e possibilidade de pancadas isoladas à tardinha; talvez haja recessão em 2009 e há uma chance em 50 milhões de que a Terra seja engolida por um buraco negro quando ligarem o acelerador de partículas na Europa, mas ali estávamos nós, dois homens em horário de almoço, decidindo entre dezenas de possibilidades de agraciar nossas papilas gustativas nos próximos minutos. No fim das contas a vida é isso aí, escolher entre ervilhas e beterrabas, antes que chegue o último suspiro e sejamos nós o alimento de outras criaturas. Qual a pressa?
O sujeito serviu-se de três rodelas de beterraba e passou-me a colher. Eu sorri, ele sorriu de volta. Pensei em desejar-lhe feliz natal, mas era cedo, dizer bom apetite, mas era tarde: a mulher atrás de mim limpou a garganta, dando a entender que se eu não fosse me servir de nada era melhor sair da frente, em vez de ficar ali, com a colher suspensa sobre a bancada de aço inox, a contemplar os legumes e atravancar sua passagem.
23 Comments:
Vc escreve muito. Bem. e graciosamente.
Parabéns. Fico aqui à espreita, pensando: um dia chego lá...
adoooro!!!
sempre passo por aqui esperando encontrar uma cronica nova.
poderiam ser semanais não???
esse é o problema do século XXI: viver com pressa.
Pois é, a gente se estressa muito com pequenas coisas, não? Mas que é agoniante estar em fila e ter uma pessoa 'lerda' na frente, ah, isso é. Rsss! Agora: "No fim das contas a vida é isso aí, escolher entre ervilhas e beterrabas, antes que chegue o último suspiro e sejamos nós o alimento de outras criaturas". Que horror! A vida não pode ser só isso... escolher entre ervilhas e beterrabas? Eu odeio as duas... prefiro escolher entre um arroz de carreteiro ou uma massa carbonara. Ou então entre mousse de chocolate e torta de limão para sobremesa. Agora sim, isso é vida! Rssss! Bjs!
Depois de tudo isso, o que de melhor posso fazer talvez seja sorrir para você, senhor Antonio Prata, mesmo que apenas virtualmente.
Nada comparado aos sorrisos presenciais, complementados com tantos outros auxílios, mas enfim...
Bons sorrisos!
Nada como um sorriso para desarmar até o mais impaciente dos companheiros de fila. Sempre ouvi dizer que isso fuinciona.
Meu querido, sou (eu sei que sou) seu maior fã! desde os tempos caprichosos, tenhos encaernado todas as suas cronicas! Por favor leia o que escrevi sobre vc: http://www.meadd.com/dieguito/3410348
Fique bem, afetuosamente, Renato
(há, sou apenas um amador, nem chego perto do seu taLENTO!)
RENATO.DIE@HOTMAIL.COM
passo extremos momentos de mal humor durante o dia.
Alguns deles ligados à falta de pressa que as pessoas têm.
Vou exercitar perceber que alguns segundos andando mais devagar na rua não vão me matar.
Sério, acho que sou a única adolescente que não começou a ler suas crônicas na Capricho. Estou em desvantagem, tem muita coisa que ainda não li. By the other hand, pelo menos assim, não acaba tão rápido.
Enfim, adoro seus textos. Dizer que você escreve bem é besteira: é o que todo mundo diz, portanto, você já sabe. Mas meus dedos falam por si só quando digitam que eu me sinto tão intelectual lendo seus textos quanto me sinto independente cuidando da minha gata sozinha. É consolador.
Agora, parando com a bendita mania de mudar de assunto, tá mesmo difícil de encontrar alguém que pare pra sorrir. Mas muda sim o dia da gente, até que no dia seguinte o telefone toque e você descubra que tem algo importante pra entregar antes do almoço.
Enfim, estou pessimista, hoje não foi mesmo um bom dia.
Estou esperando pela próxima crônica.
Beijo
A vida cotidiana faz de nós uns bichos estranhos.
Se bichos sempre fomos, agora somos estranhos.
O caos do mundo só vira tema, porque nos incomoda, se não fosse assim nem nos daríamos conta, simplesmente cortariamos a fila, mas...
A boa educação manda nos importarmos com aquilo que todos se importam...
Me sinto robô nessas horas. Robô ou robo? Ai meu Deus!!! Agora devo me preocupar com o danado do chapéuzinho que se foi...
^^^^^^
E assim a vida vai passando...
Esse teu texto me lembrou um poema do Drummond do qual tenho, na verdade, me lembrado frequentemente, "Morte no Avião": "Estou na cidade grande e sou um homem na engrenagem. Tenho pressa (...) Peço passagem aos lentos, não olho os cafés que retinem xícaras e anedotas..."
pena que o Drummond-eu-lírico não tenha encontrado um sorriso no meio caminho, porque a boa vida é fartamente recheada deles :)
É claro que você não vai comentar com seu coroa, mas você escreve melhor que ele. Eu não sei se ele reconhece isso,e tipo um dia te disse, com os olhos aguados: " Você vale ouro, Toninho Prata. Quem sabe um dia escreva uma novelinha de ban-bang, aí sim dá pra ganhar uma prata e comer uma globais, isso que é vida garoto..." Ai
Olá.Adorei a crônica.
Eu sou leitora da Capricho e comecei a comprá-la exatamente para ler sua coluna,e fiquei muito triste quando você largou o cargo.
Enfim,eu pretendo um dia ser cronista e admiro MUUITO o seu trabalho,mesmo.
Quando puder,passa no meu blog (?)
Beijos
Uma amiga me mandou o endereço e afirmou que eu iria gostar daqui.
Certa, ela.
um beijo!
É justamente isso!!! Brilhante!
Não falo da temática somente, mas da forma de se expressar: o todo está em tudo. Não existem partes menores ou detalhes, se as maiores são compostas e se justificam nas supostamente menores também! Sua escrita meio despretensiosa, cheia de links aparentemente bobos, arrematam a idéia central do ensaio de modo leve, tornando os alertas a questões muito adultas soarem como moral de história infantil. Sem perder devida a relevância, é lógico!
Fantástico! Você tem mais um fã!
Entrei no seu blog e li esta bela cronica...amei....gostaria que lesse meus ensaios de escritos no meu blog....escritosgracaazevedo.blogspot.com bj graça azevedo
hahahaha..grão de bico com atum foi ótimo.
fico triste de nunca mais ter tido contato contigo. insisto ainda nuns e-mails vez ou outra, mas eles só vão...
saudades sabe?
fã sempre.
A crônica do dia-a-dia, com olhar de quem tá acordado.
That´s the point! Soberba a sua lição! Sou dessa gente estranha k olha a colher suspensa com um olhar p´ra lá de estrábico e admito : SHAME ON ME!!!!
gostei muito da sua crônica. parabens!
Lembro das suas histórias da época da "Capricho", pedia a revista emprestada só pra ler a ultima página e lá estava você! Resolvi te escrever um e-mail quando ainda fazia colegial falando da minha dúvida em fazer ou não fazer jornalismo. Não espero mais a sua resposta pq já estou concluindo o curso (rs!), mas não esqueci da satisfação em ler os seus textos. Que bom que encontrei seu blog, poderei acompanhar seu novo ano e descobrir o que guarda nas outras gavetas.
Feliz 2009!
carol_coelho@msn.com
Este é um testemunho que eu direi a cada um que ouça. Eu tenho casado quatro anos e no quinto ano do meu casamento, outra mulher teve que levar meu amante longe de mim e meu marido me deixou e as crianças e nós sofremos por dois anos até que eu encontrei um post onde este homem Dr.Wealthy ter ajudado alguém e eu decidi dar-lhe uma tentativa de me ajudar a trazer o meu amante de volta para casa e acreditar em mim eu só enviar minha foto para ele e do meu marido e depois de 48 horas como ele me disse, eu vi um carro dirigiu para o casa e eis que era meu marido e ele veio para mim e para as crianças e é por isso que eu estou feliz em fazer com que cada um de vocês pareça conhecer este homem e ter seu amante de volta para o seu eu. Seu email: wealthylovespell@gmail.com .OU VOCÊ TAMBÉM PODE ADICIONAR ELE SOBRE O WHATSAPP USANDO ESTE NÚMERO DE CELULAR 2348164728160.
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