amores expresos, blog do ANTÔNIO

Friday, April 27, 2007

Mao

Houve um longo mês durante o qual Xangai foi uma selva de 18 milhões de desconhecidos do outro lado do mundo. Até que o Joca Terron (que vai pro Egito nesse mesmo projeto maluco) e a Isabel (que vai ficar com saudades), me disseram: “Você tem que conhecer o Mao, o cara é uma figura”. E a China imediatamente ficou mais con-fortável.
Mao teve um restaurante chinês na Pamplona por anos e agora voltou para a China. Trocamos e-mails e ele me pediu umas caixas de própolis. Quando me perguntavam, às vésperas da viagem, o que eu ia fazer na China, eu dizia: levar própolis pro Mao. Não era menti-ra, meu único compromisso aqui, coisa a fazer, tarefa, chame do que quiser, era entregar as três caixas marrons com umas abelhas dese-nhadas nas mãos de Mao. Pois ontem liguei pra ele.
Mao veio até meu hotel, me comprou um cartão que serve para metrô, ônibus e táxi, me levou até a casa dele e falou durante horas sobre a cidade, sua vida, a revolução cultural, a China e o mundo, enquanto eu anotava, avidamente, no meu caderninho. Se voltasse para o Brasil imediatamente, já teria material para um livro. Ou mais.

A maior marcenaria da Ásia

O bisavô de Mao era marceneiro no fim do século XIX. Tinha uma pequena oficina. Um dia, um inglês que ouvira falar de seu talen-to e honestidade apareceu por lá e pediu uma poltrona. Não qualquer poltrona. Fez especificações detalhadas: queria madeiras finas, mo-las novas e da melhor qualidade, pregos e parafusos de tais e tais tipos, juntas feitas de sei lá o que -- só faltou pedir direção hidráulica e calotas de molibidênio... Depois do prazo combinado o inglês vol-tou. Olhou a poltrona atentamente e,para a surpresa do marceneiro, tirou uma adaga do bolso e retalhou o assento de couro. Depois de fazer uma autópsia detalhada das entranhas do móvel, concluiu. “Vo-cê é honesto. Fez exatamente o que combinamos, quando poderia ter embolsado o dinheiro e colocado peças usadas dentro. Te faço uma proposta. Vou construir um grande prédio na beira do rio (hoje, o Bund). Quero que você faça toda a mobília.” O marceneiro disse que não tinha como, era só ele e um ajudante naquele cubículo. O inglês falou que não havia problema, a obra demoraria vários anos, ele adi-antaria 30% do valor e o bisavô de Mao poderia abrir uma fábrica, contratar empregados, comprar ferramentas.
Em alguns anos, a Mao Quan Tai era a maior fábrica de móveis de toda a Ásia. Fabricava as mobílias mais elegantes para ingleses e franceses que faziam fortuna da noite pro dia vendendo ópio e com-prando seda, algodão e chá. Seus filhos eram dois playboys, como convém à segunda geração de novos ricos. O avô de Mao estudou em Cambridge e adquiriu costumes europeus. Seu irmão era amigo da primeira dama da China, esposa de Chiang Kai-shek. Um terço das terras ao norte de Xangai era deles.
Na década de 30, os japoneses invadiram Xangai. Em 1938, queimaram a fábrica. A família de Mao teve a segunda maior perda civil da cidade durante a invasão.
O avô de Mao, dandy e fidalgo, teve que trabalhar. Foi para o sul do país, onde ajudou os norte-americanos a fazerem bases da força aérea para o Kuomintang e Chiang Kai-shek usarem na guerra contra os comunistas. Em 1949, Mao Tsé Tung venceu o Kuomin-tang, a família de Mao (o nosso), fugiu para Hong-Kong. Ele, ainda criança, ficou com alguns parentes.
A partir da década de 60, o regime de Mao Tsé Tung foi se fe-chando e começou e perseguir quem tivesse quaisquer relações com o Kuomintang ou fosse simplesmente descendente de empresários, donos de terras ou mesmo profissionais liberais. A revolução de ope-rários e camponeses não queria ser poluída pelo “sangue sujo” dos “sequazes do capitalismo”. Mao era chamado de “filho de cachorro” e tratado a pontapés. (Leiam Cisnes Selvagens, de Yung Chang). Sua mulher, Lilia, que durante todo o colegial fora a melhor aluna da esco-la, foi proibida de entrar na faculdade. O irmão de Mao foi mandado para um campo de reeducação na Manchúria, para aprender com camponeses a ser um verdadeiro revolucionário. Em alguns dias fa-zia 40 graus abaixo de zero.
Com a morte de MaoTsé Tung e a entrada de Deng Xiaoping, no fim dos anos 70, a China começou a se abrir. Mao e Lilia foram para o Brasil, onde ficaram 28 anos. Voltaram há três. Moram num condomínio de classe média alta nos arredores da cidade, onde me receberam com chá, biscoitos, pantufas e uma hospitalidade que so-ma a dos brasileiros com a dos chineses. No fim da tarde fomos a um restaurante e eles me ofereceram um banquete. Uns seis pratos, de camarão ao transcendental (como diria o Daniel Galera, comendo chorizos em Buenos Aires) pato laqueado de Pequim.
Mao é otimista quanto à China. Diz que a vida está melhorando. Todo mundo come, todo mundo tem celular, pode comprar livro, CD, DVD, entrar na internet, reclamar do governo. “Olha as mangas! Os abacaxis!”, dizia ele, apontando as quitandas pela rua, quando íamos para sua casa. “Antigamente não tinha nada disso. As pessoas estão felizes”. Pergunto se não guarda rancor do passado, das persegui-ções e humilhações. Diz que não, que eles têm que olhar para a fren-te. Se o um bilhão e trezentos milhões de pessoas fossem resolver as contas da revolução cultural, Israel e Palestina pareceria uma guerra de Playmobil. Ainda bem que, aparentemente, os outros um bilhão, duzentos e noventa e nove milhões, novecentos e noventa e nove mil e noventa e nove pessoas pensam como Mao.

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