amores expresos, blog do ANTÔNIO

Monday, December 22, 2008

Mudo-me

Caros leitores e leitoras que freqüentam esse blog: estamos de mudança. À partir de já, você pode me ler no http://blog.estadao.com.br/blog/antonioprata

Estávamos vivendo aqui provisoriamente. Vim para passar um mês, em abril de 2007 e nunca mais saí. Como vocês estão vendo aí em cima, esse blog está hospedado no site do projeto Amores Expressos, um incrível projeto literário e cinematográfico que me mandou para Xangai e para o qual estou terminando meu romance. Depois da China, passei a publicar aqui minhas crônicas da Capricho, do Guia do Estado e outros textos. Agora escrevo domingo sim domingo não no caderno Metrópole e, por isso, mudo-me lá pro portal do Estadão. Esse blog aqui vai continuar no ar (ou onde quer que fiquem os blogs), contendo toda a experiência da China, mas não será mais atualizado.

A todos e todas que me têm linkado a seus blogs: em primeiro lugar, obrigado. Em segundo, peço a gentileza de trocar o endereço. Em terceiro, apareçam. Tentarei ser mais freqüente. Isso não é uma promessa, mas uma esperança ou, vá lá, um bom voto para o ano que vai nascer. Boas festas a todos, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender.

Saturday, December 13, 2008

A Gaveta

(publicado no Estadão)
O ano vai chegando ao fim e decido arrumar a gaveta. Há várias gavetas em minha casa, evidentemente, mas refiro-me a uma em especial, onde há um tempo eu guardo os documentos, recibos, comprovantes de carta registrada, esses papéis fugidios que, como toda pessoa desorganizada, temo precisar um dia e não encontrar: “a geladeira pegou fogo no dia que instalaram, mas pergunta se ele tinha recibo?”. “Fraudaram um cheque de treze reais e agora tá devendo cento e trinta mil ao banco. Tivesse guardado os canhotos...”. “Lembra do Antonio? A Receita apareceu com o exército, perguntando pela página dois da declaração de 1998. Não achou. Parece que tá lá em Guantánamo, aguardando julgamento”. Agora, quando surgem esses pensamentos, lembro-me que em meio à barafunda que é minha casa, ao caos cartorial e burocrático que é minha vida, há esse cercadinho de juízo e precaução, zelando por meu sono: a gaveta.
Acontece que com os anos os papéis foram se acumulando e a gaveta tornou-se, ela também, um inferninho. Quase não fecha de tão abarrotada, na última eleição levei meia hora para achar o título de eleitor e começo a temer que se os homens de preto interfonarem, não encontrarei a página dois da declaração de 1998 antes que subam as escadas e derrubem a porta. O ano termina e, num ato de fé e otimismo, digno do mês de dezembro, decido arrumá-la.
De início não encontro dificuldades: contratos aqui, recibos ali, essas pragas azuis e amarelas do redeshop vão pro lixo... Vou fazendo pilhas temáticas, imagino pastas coloridas e etiquetadas, em 2009 cada coisa terá seu lugar, tudo será facilmente localizável, a vida parece simples, penso até em começar uma natação.
Aos poucos, no entanto, surgem os problemas -- se os armários escondem esqueletos, caro leitor, as gavetas também guardam seus ossinhos: esse cartão postal, eu respondi? Tenho que mandar a cópia do PIS para o SESC. O IPVA... Céus, não paguei o IPVA. A pilha das pendências vai crescendo, crescendo, então desaba sobre mim. Pastas não darão conta do recado: não é a gaveta que precisa ser organizada, é a vida. Preciso ganhar mais dinheiro. Preciso acabar meu romance. Ver mais os amigos e pagar a conta de luz. Preciso estabelecer prioridades, metas. E cumpri-las, claro. Preciso de uma secretária. Não, não, de uma analista. Perder uns quilos não seria má idéia. E se eu fizesse abdominais? Preciso ler Proust. Do alto da pirâmide de papel, trinta e um anos me contemplam: afinal, Antonio, o que você quer da vida?
Desisto. Não adianta. A gente faz o que pode. É tarde. Sou isso aí, o conteúdo da gaveta e o que está fora dela. Paciência. Guardo tudo de volta. Dois mil e nove que venha. Semana que vem compro um baú. E fim de papo.

Wednesday, December 3, 2008

TORÓ

(publicado no Estadão)

A descarga elétrica é um chicote de 27.700 graus -- quatro vezes a temperatura na superfície do sol. O ar em torno desloca-se causando o estrondo, que viaja por entre os prédios a 340 metros por segundo. O homem por trás dos óculos e do bigode volta os olhos para cima. A nuvem preta começa a seiscentos metros de suas pupilas e só termina catorze quilômetros depois, mas de onde ele está tudo o que vê é o céu tão preto que é como se a Terra tivesse sido engolida por um cachorro. As três moças de salto-alto e crachá dão uns gritinhos, excitadas com o próprio susto. O velho da banca guarda o display da mulher pelada. Os dois frentistas correm para estacionar os carros recém-lavados sob a parte coberta do posto. O vendedor de abacaxis recolhe as fatias dispostas sobre a barraquinha e as põe no isopor envolto por fita marrom. No ponto de ônibus coberto há uma discreta migração da periferia para o centro. Os estudantes de uniforme e i-pod passam correndo e gritando pela calçada – mas talvez corressem e gritassem do mesmo modo sem trovão ou com chuva de canivetes. O vira-lata solta o osso, fareja o ar espesso com pompa de especialista e sai trotando. O homem por trás dos óculos e do bigode atormenta-se com a lembrança de uma janela longe dali: fechou? Não fechou? Agora é tarde, pois a primeira gota cai sobre o teto do posto, a segunda em cima do ponto de ônibus, a terceira na testa de uma das moças, a quarta estatela-se no asfalto e a chuva começa como no pior pesadelo de Asterix: o céu desabando sobre nossas cabeças. As moças correm a toda velocidade que os saltos permitem. O homem por trás dos óculos e do bigode, convencido de que não fechou a janela, arrasta seu arrependimento para debaixo do ponto, onde umas quinze pessoas se acotovelam -- embalde, pois a água vem de tudo quanto é canto: de cima pra baixo, de baixo para cima, de um lado pro outro; jorra de dentro dos bueiros entupidos, desce em cachoeiras pelas calhas; sacos de lixo e garrafas pet competem no rafting do meio fio. Em cinco minutos não haverá mais ninguém sob o ponto. Em quinze, o vendedor de abacaxis, com água pelo joelho, abandonará o isopor. Em vinte, os frentistas desistirão da trincheira de panos e pneus, a água já entrando pelos escapamentos. Em vinte e nove minutos a chuva haverá terminado. As moças de crachá se secarão com os guardanapos de uma padaria e o vira-lata tremerá dentro de um fogão abandonado no terreno baldio. Em duas horas o homem ajeitará os óculos e torcerá a ponta do bigode ao contemplar sua sala. O toró será a principal notícia do Jornal Nacional, mas quem mora por aqui prescindirá das estatísticas, bastará olhar pela janela para se dar conta do estrago: é como se a cidade tivesse sido roída por um cachorro.