ALL DISNEY
(publicado no Guia do Estadão)
Toda vez que vejo a tabuleta “Não sei voltar sozinho, meu lugar é na garagem”, no carrinho de supermercado do prédio, sinto um pendor para o vandalismo. Tenho vontade de agarrar aqueles arames fanfarrões e falar: “ah, não sabe? Quer dizer que é capaz de escrever um aviso em primeira pessoa, imprimi-lo numa placa, mas esticar a rodinha até o botão do elevador e apertá-lo, que é bom, nada? Agora vai voltar sozinho, sim senhor!”.
Suponho que eu devesse achar graça em estabelecer contatos imediatos de terceiro grau com um carrinho de supermercado. E, sentindo-me satisfeito por morar num edifício onde tal objeto é tão gentil e bem-humorado, deveria olhá-lo com ternura e dizer “ok, amigão, vamos lá, eu te devolverei à garagem, seu doce lar, onde reencontrará seus irmãos metálicos e poderá fazer as mais loucas traquinagens!”. Mickey Mouse aparecer com vassouras e baldes dançantes ou carros falarem abrindo e fechando os capôs seria uma consequência lógica, e eu sorriria mais uma vez, pois a vida, afinal de contas, havia se tornado um desenho animado.
Está certo, o lugar do carrinho é na garagem, como o céu é do condor e a Rua Javari é do Juventus. Longe de mim querer condená-lo a noites frias em halls escuros, ou espremê-lo ao lado de vizinhos resmunguentos, no canto de um elevador. O que penso, triste, diante da tabuleta, é: onde foi que nós erramos? Apesar de todas as provas em contrário, eu acredito no ser humano. Talvez algum Nobel gagá ainda explique meu otimismo como fruto do baixo QI do brasileiro, mas enquanto isso não acontece, continuo achando que deveríamos levar o carrinho para baixo – e diminuir as emissões de carbono, votar nas eleições ou bater panelas na rua – mais movidos por Thomas More e Rousseau do que por Disney e Pixar. A tabuleta e seu humor infanto-publicitário, no entanto, apenas confirmam que nossa visão de cidadania não é a de Rousseau: obedecer as leis que nós mesmos ajudamos a criar, mas a de Scooby Doo: se fizermos tudo direitinho, ganhamos um biscoito no final.
É um curioso autismo lúdico: não olhamos nos olhos dos vizinhos, mas conversamos com carrinhos de supermercado. Não é de se admirar que as coisas estejam como estão. (E os carrinhos, pelo menos aqui no meu prédio, continuem abandonados no elevador. Tadinhos).
Toda vez que vejo a tabuleta “Não sei voltar sozinho, meu lugar é na garagem”, no carrinho de supermercado do prédio, sinto um pendor para o vandalismo. Tenho vontade de agarrar aqueles arames fanfarrões e falar: “ah, não sabe? Quer dizer que é capaz de escrever um aviso em primeira pessoa, imprimi-lo numa placa, mas esticar a rodinha até o botão do elevador e apertá-lo, que é bom, nada? Agora vai voltar sozinho, sim senhor!”.
Suponho que eu devesse achar graça em estabelecer contatos imediatos de terceiro grau com um carrinho de supermercado. E, sentindo-me satisfeito por morar num edifício onde tal objeto é tão gentil e bem-humorado, deveria olhá-lo com ternura e dizer “ok, amigão, vamos lá, eu te devolverei à garagem, seu doce lar, onde reencontrará seus irmãos metálicos e poderá fazer as mais loucas traquinagens!”. Mickey Mouse aparecer com vassouras e baldes dançantes ou carros falarem abrindo e fechando os capôs seria uma consequência lógica, e eu sorriria mais uma vez, pois a vida, afinal de contas, havia se tornado um desenho animado.
Está certo, o lugar do carrinho é na garagem, como o céu é do condor e a Rua Javari é do Juventus. Longe de mim querer condená-lo a noites frias em halls escuros, ou espremê-lo ao lado de vizinhos resmunguentos, no canto de um elevador. O que penso, triste, diante da tabuleta, é: onde foi que nós erramos? Apesar de todas as provas em contrário, eu acredito no ser humano. Talvez algum Nobel gagá ainda explique meu otimismo como fruto do baixo QI do brasileiro, mas enquanto isso não acontece, continuo achando que deveríamos levar o carrinho para baixo – e diminuir as emissões de carbono, votar nas eleições ou bater panelas na rua – mais movidos por Thomas More e Rousseau do que por Disney e Pixar. A tabuleta e seu humor infanto-publicitário, no entanto, apenas confirmam que nossa visão de cidadania não é a de Rousseau: obedecer as leis que nós mesmos ajudamos a criar, mas a de Scooby Doo: se fizermos tudo direitinho, ganhamos um biscoito no final.
É um curioso autismo lúdico: não olhamos nos olhos dos vizinhos, mas conversamos com carrinhos de supermercado. Não é de se admirar que as coisas estejam como estão. (E os carrinhos, pelo menos aqui no meu prédio, continuem abandonados no elevador. Tadinhos).
24 Comments:
... e tantas pessoas sozinhas mas cercadas de tantas outras pessoas.
.
taí, teu texto me deu uma idéia. dia desses em que bater uma crise existencial casca-grossa ou solidão infinita [que é coisa que dá às vezes], apareço eu aí na tua garagem com uma tabuleta. café? (sem intenções sexuais.)
beijo! bom final de semana.
Acho que é mais ou menos isso também:
"...Em cada canto janelas sisudas de cortinas cerradas como dentes
Mais longe, mais acima, edifícios de costas nuas cheirando a Dior para camuflar o ranço
Luzes coloridas por toda parte
Loucura..."
Karol Felicio
CADÊ A CRÔNICA DO BOLO??
AI MEU DEUS!
SUMIU
Mas não é preciso olhar nos olhos dos vizinhos. Ninguém precisa ser amiguinho de ninguém. Basta cumprir a sua parte, ser civilizado em vez de cordial. Veja a Inglaterra.
This comment has been removed by the author.
No meu prédio o "aviso disney" não funcionou e aí fizeram um sistema com um cartãozinho, que o carrinho só sai quando vc põe o cartãozinho e só devolvem o cartãozinho se você devolver o carrinho.
(mania de brasileiro também, colocar 'inho' nas coisas né? ainda bem que eu sou baixinha, me encaixo bem.)
E eu olho nos olhos dos vizinhos.
entre carrinhos de supermercado com plaquinha nhenhenhe, latinhas da coca cola que "contêm milhares de sorrisos" e esfregões de shangai que à primeira vista não são tão simpáticos quanto os outros, eu fico com a última opção.
adorei o paradoxo Rousseau x biscoitinhos do Scooby Doo.
Claro que as idéias de Thomas More e Rousseau (apesar de eu não ter a mínima noção de quem é Thomas More) são importantes e vitais. Mas quem não é cativado por Walt Disney? E discordo de vc... As animações sempre trazem uma mensagem bonita para as crianças e mais ainda para os adultos. Não podemos viver no mundinho de "Os Incríveis" ou etc, mas o exemplo que ele nos dá é bem mais fácil de entender do que as palavras complexas de um filósofo...
caro antonio. adoro seus textos. acho que seria de bom gosto você me consultar antes de fazer qualquer citação à minha pessoa em seus devaneios.
saudações calorosas.
Scubidu
Perfeito! Li no guia dessa semana.
Ri até cair no chão com a bronca no carrinho!
Abraços.
Genial. Você foi muito "feliz" nessa observação. Não é à toa que seus textos fazem tanto "sucesso" (é delicado falarmos em sucesso na literatura, eu sei, ainda mais quando não se trata de uma J.K.Roling).
Meus parabéns pelo blog.
Quando puder/quiser, apareça no Cinco Espinhos, onde nos propomos a tecer "críticas" literárias em forma de literatura.
Toda semana, também, garimpamos a Internet à procura do texto que valha a pena de um autor "desconhecido".
Abraços,
a Autora
Seja um bom garoto, leve o carrinho de volta pra garagem, faça coleta seletiva, diga olá pro seu porteiro e quem sabe assim você não tem uma vaga garantida no céu.
Thomas Moues, que Thomas Morus...vc não sabia que quem criou a Utopia foi Disney? hehe.
O mundo é um caos, deusmelivre...rs
meu sonho é pegar um elevador com voce
Poxa... eu gosto da Pixar....
Mas o adesivo me irrita também.
profundamente.
Participe do Concurso Cultural um ano insone
Pelo menos eu cumprimento os vizinhos e levo o carrinho de volta pra garagem. É, quem sabe o Brasil ainda tem jeito?
Hahahahahhaa
Muito bom como sempre APrata!
De Rousseau para os biscoitinhos do Scooby Doo então foi gênial, levarei pra minha aula de política e tudo ahhahhaha
abraços!
Eu não gosto dos meus vizinhos assim como não gosto da Disney.
E também não gosto do carrinho enferrujado do meu prédio que ninguém nunca sabe por onde o coitado anda. Não tem aviso e nem cartãozinho. E os vizinhos são exatamente como ele, calados, velhos e enferrujados.
Bom feriadão (:
ando há muito tempo com um problema sobre o recado que há no carrinho do meu prédio (você sabe eu me mudei). diz assim: "ponha o carrinho no elevador e avise o porteiro." que mundo é esse, meu?
ainda bem que tem os carrinhos pra da bom dia no elevador de manhã cedo, né?!
rsrs
aiaiai, meu Deus! Casa comigo?rs Você é sensacional!
conheço você dos livros. descobrir o blog de um "ídolo" (cole sua foto aqui) dá a impressão de invadir a privacidade, é estranho.
depois do cabeçalho básico de fã, devo dizer que já tinha lido esse texto no jornal e me perguntado se realmente as coisas são diferentes hoje. acho bastante natureza-humana essa falta de (con)tato com o próximo - talvez apenas os carrinhos e seus recados tenham mudado. ou será que eu sou o pessimista?
no mais, espero que os carrinhos do seu prédio estejam bem unidos nessa noite fria. mando abraços fortes em todos.
pra você também, claro.
Pois é, em Recife o detran fez uma campanha de sucesso colocando palhaços em cada sinal para "educar" os pedestres que atravessam a rua fora da faixa, com o sinal verde para os carros etc.Já imaginou levar curra e lição de moral de uma pessoa vestida de palhaço? Para mim os palhaços são o símbolo da insubordinação, da anarquia, da transgressão .Fiquei chocada.
É, as pessoas ficam com mais compaixão de um carrinho com plaquinha "me leve de volta" do que de uma pessoa com uma plaquinha de esmola...
Post a Comment
Subscribe to Post Comments [Atom]
<< Home