Cruzamento
(publicado no Guia do estadão)
Vou para o dentista, duas da tarde, meu carro corta com esforço a geléia modorrenta em que o ar se transformou esses dias. Um casal de adolescentes começa a atravessar a rua, de mãos dadas, à minha frente. Eles dão uma olhada para o meu carro, de leve, calculando. A garota faz menção de apressar o passo, o garoto a dissuade com um olhar de esguelha e, talvez, um discretíssimo aperto na mão. Eles seguem seu ritmo, lento, rumo a outra calçada.
Se nenhum de nós mudarmos nossas velocidades, acabarei por atropelá-los. É evidente que eles sabem disso, como é evidente que isso não acontecerá, pois eu venho devagar e basta pisar de leve no freio e pronto, saímos todos, são e salvos, eu para o dentista e eles para a casa dos pais de um deles, onde se deitarão numa cama de solteiro, embaixo de uma parede cheia de fotos e posteres e frases de canetinha hidrocor tipo Ju-eu-te-amo-amiga!, e descobrirão que a vida é boa. Este pequeno acontecimento me atinge em algum calo das minhas neuroses urbanas. Irrito-me porque eles fingiram que a velocidade deles estava certa, mas sabem que, se não morreram atropelados, é porque eu diminuí o ritmo. Mais ainda, talvez, porque o garoto passou para a menina a idéia, naquele olhar fugaz, de que com ele ela estava segura, de que era só confiar e tudo daria certo, eles chegariam ao outro lado da rua, depois ao outro lado do mundo, se quisessem, e seriam felizes para sempre. Mas foi o tiosão aqui quem tornou a travessia possível.
Percebo então que quem atravessou a rua à minha frente não foi um casal de adolescentes, foi a adolescência em si. E quem freou o carro não fui eu, mas a idade adulta. Pois é assim que a adolescência lida com o mundo. Não capitula: arrisca, peita. “Imagina, se eu mudo meu ritmo, o mundo é que se acostume a ele!”, e porque os adolescentes têm um anjo protetor dos mais poderosos, ou, pelo menos, uma sorte do tamanho de um bonde, acontece de chegarem, quase sempre, sãos e salvos do outro lado da rua.
Já a idade adulta pondera, põe o pé no freio quando convém, faz concessões ao mundo, dirige afinado com a sinfonia dos outros, dentro dessa outra geléia modorrenta cujo nome, hoje, soa tão adolescente: sistema. E por isso me irrito, porque ali, naquela rua, diminuindo meu ritmo, me percebo velho, adequado, apascentado. Eles vão no ritmo deles, a realidade que se vire e é assim, distraídos, que mudam o mundo.
Vou para o dentista, duas da tarde, meu carro corta com esforço a geléia modorrenta em que o ar se transformou esses dias. Um casal de adolescentes começa a atravessar a rua, de mãos dadas, à minha frente. Eles dão uma olhada para o meu carro, de leve, calculando. A garota faz menção de apressar o passo, o garoto a dissuade com um olhar de esguelha e, talvez, um discretíssimo aperto na mão. Eles seguem seu ritmo, lento, rumo a outra calçada.
Se nenhum de nós mudarmos nossas velocidades, acabarei por atropelá-los. É evidente que eles sabem disso, como é evidente que isso não acontecerá, pois eu venho devagar e basta pisar de leve no freio e pronto, saímos todos, são e salvos, eu para o dentista e eles para a casa dos pais de um deles, onde se deitarão numa cama de solteiro, embaixo de uma parede cheia de fotos e posteres e frases de canetinha hidrocor tipo Ju-eu-te-amo-amiga!, e descobrirão que a vida é boa. Este pequeno acontecimento me atinge em algum calo das minhas neuroses urbanas. Irrito-me porque eles fingiram que a velocidade deles estava certa, mas sabem que, se não morreram atropelados, é porque eu diminuí o ritmo. Mais ainda, talvez, porque o garoto passou para a menina a idéia, naquele olhar fugaz, de que com ele ela estava segura, de que era só confiar e tudo daria certo, eles chegariam ao outro lado da rua, depois ao outro lado do mundo, se quisessem, e seriam felizes para sempre. Mas foi o tiosão aqui quem tornou a travessia possível.
Percebo então que quem atravessou a rua à minha frente não foi um casal de adolescentes, foi a adolescência em si. E quem freou o carro não fui eu, mas a idade adulta. Pois é assim que a adolescência lida com o mundo. Não capitula: arrisca, peita. “Imagina, se eu mudo meu ritmo, o mundo é que se acostume a ele!”, e porque os adolescentes têm um anjo protetor dos mais poderosos, ou, pelo menos, uma sorte do tamanho de um bonde, acontece de chegarem, quase sempre, sãos e salvos do outro lado da rua.
Já a idade adulta pondera, põe o pé no freio quando convém, faz concessões ao mundo, dirige afinado com a sinfonia dos outros, dentro dessa outra geléia modorrenta cujo nome, hoje, soa tão adolescente: sistema. E por isso me irrito, porque ali, naquela rua, diminuindo meu ritmo, me percebo velho, adequado, apascentado. Eles vão no ritmo deles, a realidade que se vire e é assim, distraídos, que mudam o mundo.
16 Comments:
Mas vc também faz isso com as coisas que escreve, Antonio.
Eu tenho 19 e nunca senti essa coisa de adolescente de peitar o mundo e o escambal. Me acho ponderada até demais... das duas uma, ou eu teria esperado ou eu teria acelerado o passo.
Já fiz isso, mas - apesar de meus 20 anos - tenho esse seu sentimento quando vejo outros jovens mais fosforescentes.
Várias crônicas em um só dia. Deve ser o primeiro escritor que faz isso.
Engraçado você falar da dolescência desse jeito, eu nunca fui capaz de manter meu ritmo e os outros que se acostumem... Eu nunca pensei assim, deve ser bom!
Espero viver com essa filosofia um dia, logo! Daqui a pouco minha adolescência se esvai e ficaria meio ridiculo eu dar uma de criançinha.
Amei a Crônica, Antônio (Antônio? Que intimidade é essa?) Enfim, Sr. Prata.
Antonio, você está colocando as antigas?
Adorei a idéia, e aproveito para ser uma fã chata e fazer um pedido:
Coloca aquela crônica sua que chama-se "O Brasil na faixa" que você fala de dividir o litoral brasileiro, eu adoro ela.
Por favor.
Beijos
... hahaha, adorei a descrição do mural e a parte do tiosão. tô com trinta e cinco, e se bobear pra alguns já sou vovó.
amo te ler, antonio!
bj bj
Achei interessante o modo como de uma situação tão simples conseguiu tirar conclusões tão estarrecedoras. Muito bom mesmo!
Eu me encontro no meio do caminho entre a adolescência e a idade adulta, e já começo a por o pé no freio. Não tanto quanto meus pais gostariam, mas ainda assim já não espero que o mundo se adapte a mim como antes.
Ainda assim, creio que, de quando em vez, “ligar o F-se” é sempre válido.
Peitar o mundo é necessário.
bjs
=**
haha, acho que vc é responsável pelos últimos atropelamentos, a julgar pelos comentários...
oi antônio!
postando crônica antiga, né?
saquei a tua. ;)
mas como eu já tinha comentado no outro blog, quando vc postou, se eles tivessem na faixa, era sua orbigação de parar, tá?
beijo.
que bonito meu.
lembrei de um texto da Clarisse Linspector.."por não andarem distraídos"...só sei que o trânsito é um celeiro de idéias
Sempre que volto no blog, leio esta crônica. A melhor metáfora para adolescência que eu já li. Genial.
Já havia lido esta crônica faz muito tempo, mas não lembro onde. Não foi no Estadão, porque tou em Minas e lembraria se tivesse lido algum jornal além da Folha que não fosse mineiro. Enfim, passei os olhos nas primeiras frases e lembrei, poderia ter pulado pros próximos (estou devorando seu blog), mas a leitura flui tanto que não temos coragem de não ler até o fim.
Um dia tu também foi assim né???
Um dia foi tu que passava bem devagar, mesmo se estivesse com pressa, e fitava o motorista com ar de superior...
Tenho certeza q foi.
Afinal não foi aceitando o q os outros "mais velhos" pensam q tu cresceu tanto e está entre os melhores hoje.
E que bom que fizeste isso, pq hoje somos mais diferentes que ontem e menos do que amanhã, graças a nós mesmos.
Amei! como todos q já li.
🧐 No texto aparece a expressão " sorte do tamanho de um bonde."
Para vcs, o que significa essa expressão?
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