amores expresos, blog do ANTÔNIO

Friday, April 4, 2008

A casa do cara

(Publicado no Guia do Estadão)

A casa do cara era uma palmeira, no meio da calçada, ali no Pacaembu. Começou com um plástico amarrado ao tronco, mais nada. Bauhaus total, diria Caetano, se por ali passasse, em 1974 -- mas Caetano não passava: passávamos nós, motoristas de 2007, e recebíamos um olhar de reprovação, caso reparássemos muito. Tá certo: onde já se viu ficar assim, espiando a intimidade dos outros?
Um tempo depois, o cara colocou umas estacas do lado de lá e a coisa foi virando uma tendinha, como as que eu fazia quando era criança – mas ele não era criança. Ficava lendo um jornal, com uma naturalidade que era bater o olho e pensar: aí é a casa do cara.
Não era mendigo. Era bem vestido, limpo. Uma vez, um taxista me disse que na verdade o cara era rico e morava em Higienópolis, mas como era desses taxistas que acham que todo mendigo é rico e tá ali só para encher nosso saco, não acreditei.
Algumas semanas depois, o Bauhaus tinha tomado ares de Família Robinson. A casa era um caixote de uns dois metros de comprimento por um de largura, bem vedadinha. Até parecia um desses hotéis casulo de japonês – mas ele não era japonês.
Eu gostava de ver as melhorias. “Olha lá, ele fechou um lado com madeira”. “Plástico preto em cima, bom, deve proteger do sol”. O pé direito era baixo, é verdade, mas do jeito que estão esses apartamentos novos, o cara não estava muito pior do que nós, não.
Um dia, parei no farol, fui dar minha bisolhada e... cadê? Levaram a casa do cara, e o cara junto! “Tem abrigo pra sem teto” – dizem -- “eles não vão porque não querem”. Tá certo. Ele não devia mesmo querer. Tinha uma casa, pombas!, porque iria dormir com um monte de desconhecido, enrolado naqueles cobertores de proteger cristaleira em mudança, que parecem feitos da sujeira acumulada embaixo da cama?
Uma semana depois, na mesma praça, no mesmo jardim, lá estava ele, sob o plastiquinho, lendo sobre sinfonias, palestinos e MPs, de cabeça erguida, como quem diz: “no pasarán!”. Eu passava.
Derrubaram a casa do cara umas dez vezes, dez vezes ele reconstruiu, biblicamente. Até que, meses atrás, sumiu de vez. Talvez esteja num abrigo, embrulhado no cobertor de poeira. Quem sabe em Higienópolis, lendo Wall Street Journal com os outros mendigos de nossa grande cidade. Sei lá. Só sei é que toda vez que passo ali, vejo a sombra da palmeira na calçada e penso: aí era a casa do cara.

28 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Belo texto, Antonio! E a gente troca de casa tantas vezes e talvez nem se sinta tão à vontade, não é?

Bzzs,

April 4, 2008 at 11:21 AM  
Blogger Unknown said...

Quem liga pra aparência da cidade? Existem tantas casas mais feias por aí e as pessoas que moram delas nem gostam das próprias casas, ele gostava da dele!
Afinal, a casa dele era ali!
Droga, custa entender isso?

¬¬'

Beijos AP!
Da sua leitora tão assídua quanto você me permite ser e tão fã quanto é possível!

April 4, 2008 at 5:51 PM  
Blogger Duas estranhas não tão estranhas said...

Olá!

Coitado,querendo só o cantinho dele.
Que pode parecer pouco para uns,doidera para outros;ms o q importa é q ele estava feliz.Para ele,estava em casa!

Beijos!

Miss T!

April 4, 2008 at 9:54 PM  
Anonymous Anonymous said...

Haha, adorei o texto :)

Afinal de contas, pô!, era a casa do cara. Privacidade e respeito, né? Cada um com a sua.

Beijos;

April 5, 2008 at 9:28 AM  
Anonymous Anonymous said...

precisei vir aqui só dizer que eu chorei demais quando voce saiu da capricho, deus que maldade ._. hahaha

April 7, 2008 at 4:12 AM  
Anonymous Anonymous said...

Adorei o texto, Antonio. Acho muito engraçado o jeito como as pessoas conseguem um encontrar um canto especial para elas no meio dessa loucura que é a cidade grande (mais especificamente São Paulo) e como às vezes a nossa casa não é um lugar físico, e sim um lugar onde nos sentimos bem, quel nos passam aquela sensação de lar, de segurança.
~
Fiquei muito feliz em ecnontrar o seu blog nessa comum segunda-feira! Devo dizer quê suas crônicas da Capricho foram um dos principais motivos que me inspiraram a ser jornalista! Serei agora uma leitora assídua dos seus belos posts!
=*

April 7, 2008 at 6:48 AM  
Blogger felipe alcofibras said...

Em Santo Amaro, Alto da Boa Vista, existe um cidadão com uma casa semelhante, mas é bastante escondida, quase ninguém consegue olhar com esse ar de invasão. Ele está quietinho, ninguém aparentemente mexe com ele. Faz alguns meses ele deu uma entrevista pra TV e pensei com meus botões. Ele vai cair fora. ... Nada. Ainda bem. Não sei se ele tem essa resistência bíblica.

April 7, 2008 at 10:51 AM  
Anonymous Anonymous said...

classe média comentando , é a pior coisa que tem !

antonio ..vc tá desanimando leitoras com suas crônicas ultimamente , oras ...

April 9, 2008 at 7:25 AM  
Blogger Patrícia Anette said...

esse texto é muito válido agora que nosso amigo kassab mandou botar aquelas bagaças em baixo dos viadutos pra que não abrigassem mais indigentes

April 9, 2008 at 5:49 PM  
Anonymous Anonymous said...

Dá pra deixar uma declaração de amor aqui?
Antônio, eu sou simplesmente louca pelos seus textos!
O primeiro que li foi na Capricho há alguns anos.. e sempre tô te procurando!

Não sei como fui achar seu blog só hoje... mas foi a melhor coisa do dia!

Muito obrigada...

April 10, 2008 at 1:23 PM  
Blogger Rita Gomes. said...

Menino, nao eh q eu tava sem computador e nao te lia ha alguns poucos meses??
Feliz em ter um pouquinho de vc e de sao paulo aqui...
TE AMO. :)

April 11, 2008 at 12:42 PM  
Blogger Unknown said...

a vida alheia.. impossivel não se sentir atraído por ela, principalmente quando está assim, taum acessivel.

adoro!

April 12, 2008 at 7:03 PM  
Blogger Roberto Guerra said...

Não sou de comentar textos de outros escritores, para o bem ou para mal, mas no meio do lixo literário que grassa pela internet você é uma garrafa de Veuve Clicquot. Ótimos textos, cara. Com alma e técnica.

April 15, 2008 at 9:17 AM  
Anonymous Anonymous said...

Oi Antônio, achei o texto ótimo, como todos os outros de sua autoria.
Rápidamente!!
Pois bem, estava eu sem saber o q escrever no meu blog (recentíssimo por sinal), quando lembrei de um livro, "Estive Pensando", na mesma hora me vieram muitas idéias, e resolvi saber como anda o meu leitor favorito, do meu tempo de Capricho...
Pra minha felicidade te encontrei aqui, com um blog show, com textos tão legais que tenho vontade de lê-los em 1 segundo.
Parabéns Antônio, teus textos são criativos, interessantes, atuais, cheios técnica, mas nunca perde tua identidade.

April 15, 2008 at 9:52 AM  
Anonymous Anonymous said...

eu li "o amor que choveu" num blog de uma amiga e ela comentou q vc tinha blog. e eu achei ele!!!

cara, vc faz a maior falta na capricho! mas qndo bater saudade, vou vir aqui ^^

...qntas vezes eu não me habituei a olhar os mendigos em são paulo. chegava a ser rotina e eu tb ficava decepcionada qndo não via os sujeitos.
mas eu espero que esse cara esteja bem... e q tenha encontrado outro lugar pra fazer a casa dele =)

bjuxx

April 15, 2008 at 2:47 PM  
Blogger Lorena said...

Óóóótimo texto, Antonio! É incrível que quando a gente passa pelas ruas e vê pessoas que montam suas casas assim, como a do cara da estória, a gente pensa sempre em "esses sem teto não tem mesmo o que fazer, sujando a cidade". Mas depois de ler o texto, eu fiquei refletindo aqui sobre a maneira que você colocou toda a situação. Era o cantinho dele, afinal.

April 16, 2008 at 2:05 PM  
Blogger Fashionista Butterfly said...

Muito lindo o seu texto... sei lá como as outras pessoas interpretaram, mas por incrível que pareça eu consegui ver muito além daquela sujeira de cidade grande. É sempre surpreendente reparar nas pessoas que estão associadas às coisas que achamos negativas.

Ainda bem que existe a Internet, fiquei desolada quando você se despediu da Capricho mas me conformei, um pouco, ao encontrar seu blog.

April 16, 2008 at 4:38 PM  
Anonymous Anonymous said...

This comment has been removed by the author.

April 17, 2008 at 5:30 AM  
Blogger Unknown said...

This comment has been removed by the author.

April 18, 2008 at 5:47 AM  
Blogger Carol Rattacaso said...

Antônio,
Muuuuito bom mesmo seu blog!! Li todos os seus posts! Demorei dias pra conseguir ler tudo, mas valeu a pena!! Muito bom!
Parabéns!

April 18, 2008 at 5:52 AM  
Anonymous Anonymous said...

Sabe...eu acho que no íntimo todo mundo tem o desejo de erguer seu próprio lar, como uma forma de perpetuar a si; deixando como legado algo solidamente edificado.

Em grande parte as pessoas sonham, planejam, recontam finanças, visitam corretores...e acabam concretizando o sonho quando os netos vão conseguir usufruir dele como ELES desejariam.
Outras pessoas colocam o papelão debaixo do braço, escolhem um lugar "aprazivel" e lá fincam a sua casa, simples assim.
Pq será que burocratizamos tanto as coisas de nossas vidas?

Adorei o blog. Beijo.

Camila (notasnotorias.wordpress.com)

April 18, 2008 at 6:56 AM  
Anonymous Anonymous said...

Meus olhinhos brilham lendo cada linha!

Já adicionei seu espaço no meu blog, e com certeza aqui ser ponto certo de boas leituras diárias!

UM ABRAÇO

April 20, 2008 at 2:48 PM  
Anonymous Anonymous said...

Oi,
Eu já tinha o blônicas nos meus favoritos a muito tempo, pela Tati e pelo Xico principalmente. Sabe Lá porque, nunca tinha te lido.
E essa semana me apaixonei. Uma delícia os textos, as cartas, tudo!
Só pra te avisar, que tens mais uma fã.
Um beijo
Lora

April 22, 2008 at 2:42 PM  
Anonymous Anonymous said...

Parabens pelo texto. Nao so por esse... vi varios e realmente muito legais.
Abraco.

April 23, 2008 at 1:23 PM  
Blogger Roger Rodrigues said...

Que giro intenso de pessoas no seu blog!
Estou aqui pela primeira vez sob indicação de uma amiga. Realmente excelente!
Tendo tempo disponível, faça uma visitinha para um novato aspirante à sua posição.

April 23, 2008 at 2:23 PM  
Anonymous Anonymous said...

A nossa casa é onde se espraia a nossa Língua !

A SEIVA

April 24, 2008 at 8:10 AM  
Anonymous Anonymous said...

Tb passo por ali todo dia e acompanhei todo o drama.

Ontem lembrei de vc qdo passei por um outro conhecido morador alternativo de Perdizes. Este mora na Cardoso de Almeida, ali perto da Drogasil (do outro lado da rua).
Vc já deve ter visto. É engraçado com a casa dele cresce! Já é quase um penthouse! o estranho que a altura não passa de 1,5 Mt. Sempre fico imaginado como ele vive abaixadinho ali.

April 25, 2008 at 7:20 AM  
Anonymous Anonymous said...

eu gosto exatamente como você receberá o seu nível de toda

January 26, 2013 at 4:30 AM  

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home