SAPO POR LEBRE
Se eu fosse crente diria que foi Deus quem quis assim, mas como só acredito no que pode ser provado à luz da ciência, posso afirmar, com certeza absoluta: isso foi coisa do Saci.
Eu ia comer num típico restaurante xangainês escolhido a dedo no guia, mas o hotel estava sem dinheiro para trocar meus dólares. Meus 100 yuans (pouco mais de 20 reais) não dariam para dois táxis mais a refeição. (O metrô fica longe, quando eu chegasse ao restaurante, já ia estar fechado). Saí andando aqui por perto, em direção “ao meu restaurante de sempre”, onde comi a costela da Manchúria. Fui lá só três vezes, mas já me sinto tão à vontade ali quanto na Mercearia ou no Filial.
O Saci é preguiçoso em dia de folga, mas quando pega no batente, meu povo, passa camelo em buraco de agulha e faz crochê com ponto duplo. O restaurante estava fechado. Quer dizer, estava aberto, tinha um monte de gente lá dentro, em torno de mesas cheias de comida e garrafas de cerveja, uma quantidade de cerveja que nunca tinha visto por ali (típico do Saci...), mas a garçonete se atirou na minha frente e disse: no open!
Saí andando, otimista – ainda não sabia do encosto --, pensando: tudo bem, é nessas horas que o inesperado entra em cena e coisas legais acontecem. Aquela coisa meio John Lennon de life is what happens we we’re too busy making other plans”, sabe? Sei...
Achei um restaurante uns trinta metros adiante. Entrei. Esse sim parecia fechado – todos os funcionários estavam numa mesa, esperando o jantar --, mas um garçom (seria ele o Saci em pessoa?) pediu para que eu me sentasse. Trouxe o cardápio: só em chinês, com fotos. (E que tragam o ser que inventou que “uma imagem fala mais do que mil palavras” para a China e ele vai ver o que é bom pra tosse diante dessas misturebas dos cardápios). Eu estava com muita fome, depois de andar o dia todo pela cidade. Não quis arriscar. Precisava de nutrientes, não de antropologia. Vi um negócio com cara de frango e apontei. Para não ter erro, bati asas e – juro, não foi a primeira vez nem será a última – fiz cocoricó. O garçom fez que sim com a cabeça.
Chegou a comida dos funcionários. Um banquete. Em bacias de alumínio, montes de legumes com macarrão e carnes variadas, além de um caixote (mesmo) de arroz e outras coisas que não sei o que eram... Aí veio meu frango, numa cumbuquinha. Parecia uma moqueca, mas a carne era muito branca para ser frango e muito, como dizer, muito articulada para ser peixe. Nessa hora o Saci devia estar rindo, se contorcendo de rir, tomando uma dose de pei jou (o destilado assassino dos chineses), no alto do prédio do outro lado da rua, me olhando com uma luneta.
Eu não tinha dúvidas, eu já tinha entendido tudo, se não é frango e não é peixe, é alguma coisa que está entre a água e a terra... Mas, como um homem traído que, compelido por um masoquismo irrefreável, pede para ver as fotos da mulher com o amante, peguei os palitos e comecei a mexer na cumbuca. Claro, vi o que temia. As costelinhas do sapo. Sua caixa toráxica de cinco centímetros. Suas coxinhas, a anatomia completa do sapo ensopado na minha cumbuca.
Nas outras mesas o pessoal da cozinha devia estar fazendo apostas: “dez yuans que o gringo não come”. “Vinte que ele come. Gringo é tudo trouxa, vai ver nem sabe que pediu moqueca de sapo.” Fazer o que? Tava faminto, era tarde, eu tô na China... Comi. Chupei as cochinhas e tudo. Sabe que não é ruim? Nem ruim nem bom, não tem gosto de sapo, nem de peixe, nem de frango, nem de nada. Só de pimenta. Quanta pimenta! Coisa do Saci, claro.
Torço para que o hotel não tenha novamente problemas relativos ao câmbio, porque além de sapo eles comem grilo, água viva, cachorro, pepino do mar e o Saci, meus camaradas, está sempre atento.
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