BANHO DE BARREIRA
-- Então. Ahhhh, como, ahhh, o livro... Vai bem, história?
-- Vai. Quer dizer, história só. Livro não ainda. Começo. Olhando em volta, tomando notas.
-- O que? Tomando botas?
-- Não, notas, tomando notas.
-- Ah, cotage!
-- Não, notas, sabe, anotando?
-- Ah, sim, anotando.
-- Vou pegar cerveja.
-- Ok.
Esse minúsculo diálogo anterior levou uma eternidade. É sempre assim. Uma luta. Conheci Leo nesse mesmo bar. Eu estava perdido, tentando achar a balada Hip Hop e ele e uma amiga me levaram até lá. Muito gentis. Trocamos e-mails e telefones. Hoje ele me ligou – nove da manhã – e combinamos a cerveja. Tenho quase certeza de que ele é gay. Super efeminado, um jeito delicado, parece drag queen quando não está montada, maquiador de top model, sabe? Fiquei na dúvida sobre quais eram suas intenções com a cerveja, mas, pro diabo, se ele quiser alguma coisa, basta eu dizer, como outro dia: not sex, just beer, thank you. (Ei, eu tenho amigos gays, não é essa a questão, se fosse uma garota e estivesse afim de mim e eu não, teria o mesmo problema de sair para uma cerveja, entende?). A melhor das hipóteses, na verdade, seria ele ser gay e me contar várias histórias de amor, gays e chinesas, para o livro. Volto com a cerveja.
-- Então, hoje eu achei uma história pro meu livro, acho que vai dar pé.
-- Deus?
-- O que?
-- Fé? Deus?
-- Não, não, eu disse dar pé, acho que vai funcionar, a história.
-- Bom, bom.
Ele suspira. Eu também.
-- Então, você estuda marketing?
Ele faz uma cara estranha.
-- O que?
-- Marketing, você não disse que estuda marketing?
Ele pega um dicionário eletrônico na mochila, escreve alguma coisa, me mostra. Está escrito marketing. Faço sim com a cabeça.
-- Não! Não! Eu estudo propaganda!
E não é a mesma coisa?
-- Ah... E você quer trabalhar com mar... com propaganda?
-- Bom, não sei, eu, eu já trabalhei com sló.
-- Sló?
-- Sim, sló.
Ele escreve uma coisa lá no dicionário e me mostra. Stocks. Ações, acho.
-- Ah, você gritando, telefone, vende,compra, compra, vende?
Ele diz que sim com a cabeça e começa uma longa sentença da qual só capto algumas palavras:
-- Sló... Camisetas... Meu amigo... Voltei... Muito caro... Vermelho, e tal... Um ano... Bélgica não mesmo, ah, Bélgica não... Muito chato.
E mostra um colar. Será que ele trabalhou no estoque de alguma loja? Uma loja belga? Desencano.
-- Ah.
Silêncio.
-- Então, o que vocês comem no seu país?
É sempre assim. É o sexto chinês (ou chinesa) com quem saio, eles são todos muito gentis e solícitos, mas tem a muralha da China cultural e linguística entre nós e bobeou a gente sempre cai nesse diálogo CCAA. Parecemos dois lobotomizados conversando. O cara do Laranja Mecânica depois da experiência, sabe? Sem humor, sem malícia.
-- Várias coisas. Churrasco... Mas o prato principal é arroz, feijão, salada, carne. E um ovo. Em cima, assim.
-- Carne?
-- Carne.
-- O que é carne?
-- É carne, é... Bife.
-- Ah, bife! Arroz, feijão, salada, bife, ovo. Tudo junto?
Como assim, tudo junto? Ontem pedi macarrão com porco e tinha uns camarões no meio!
-- É, junto.
-- Não, quero dizer, todo dia?
-- Ah, não, não todo dia. A gente come outras coisas, muito peixe.
-- De mar ou de rio?
-- Os dois.
-- E os de rio também são assim, grandes?
-- Grandes, como assim?
Onde ele escutou eu dizer que os peixes eram grandes???
-- Não, a gente come peixes grandes e pequenos.
-- E você gosta de peixes grandes e pequenos?
Caralho, que tipo de pergunta é essa? Será que é um código na China para saber se eu sou bi?
-- Eu gosto de peixe.
-- Hummmm...
Silêncio. A coisa definitivamente não anda, é como ir de São Paulo ao Rio em Primeira. Passando por Belo Horizonte. Usando cachaça como combustível. E abrindo só um olho. Acho que os dois estão com preguiça de puxar papo. Peço mais uma cerveja. Ele toma a iniciativa.
-- Sabe, aquele dia, a Vivian, minha amiga... Bêbada, muito. Primeira vez eu Viviam ver bêbada assim naquele dia.
-- Sério? Mas ela muito bêbada já quando eu aqui?
-- Ponto de ônibus. Muito bêbada. Dois anos eu Vivian sem ver.
-- Mas ela já esta...
Ah, desisti. Peguei o cardápio e pedi uma comida.
-- O seu hotel é perto?
-- É, é perto.
-- Eu sei. Eu gosto andar aí rua pequena vira outra ver tudo quando andar aí hotel seu outro dia.
-- Você foi no meu hotel?
Será que era ele? Quando o cara me ligou de manhã e disse “your friend is waiting in the second floor, breakfast?”.
-- Eu andar rua pequena ver por aí hotel seu.
-- Mas você foi lá???
-- Não, só ver onde é.
Será que ele foi e agora tá com vergonha de dizer?
-- Eu gostar peixe. Aham. Muito.
Ah não! Vamos começar com a aula do Yazigi sobre comida outra vez?! Se Leo me entendesse, eu poderia pegar um palito na mesa e começar a quebrá-lo, dizer, olha, Leo, não é você, somos nós dois, eu acho que essa relação não tá indo pra frente, entende? Sinto que tem uma barreira entre nós e acho que a gente não vai superar essa barreira, sabe? Provavelmente ele iria me olhar com essa mesma cara que me olha e eu o olho e perguntar:
-- Banheira?
Pedimos a conta logo depois. Certas banheiras linguísticas são mais intransponíveis que a Migalha da China.
-- Vai. Quer dizer, história só. Livro não ainda. Começo. Olhando em volta, tomando notas.
-- O que? Tomando botas?
-- Não, notas, tomando notas.
-- Ah, cotage!
-- Não, notas, sabe, anotando?
-- Ah, sim, anotando.
-- Vou pegar cerveja.
-- Ok.
Esse minúsculo diálogo anterior levou uma eternidade. É sempre assim. Uma luta. Conheci Leo nesse mesmo bar. Eu estava perdido, tentando achar a balada Hip Hop e ele e uma amiga me levaram até lá. Muito gentis. Trocamos e-mails e telefones. Hoje ele me ligou – nove da manhã – e combinamos a cerveja. Tenho quase certeza de que ele é gay. Super efeminado, um jeito delicado, parece drag queen quando não está montada, maquiador de top model, sabe? Fiquei na dúvida sobre quais eram suas intenções com a cerveja, mas, pro diabo, se ele quiser alguma coisa, basta eu dizer, como outro dia: not sex, just beer, thank you. (Ei, eu tenho amigos gays, não é essa a questão, se fosse uma garota e estivesse afim de mim e eu não, teria o mesmo problema de sair para uma cerveja, entende?). A melhor das hipóteses, na verdade, seria ele ser gay e me contar várias histórias de amor, gays e chinesas, para o livro. Volto com a cerveja.
-- Então, hoje eu achei uma história pro meu livro, acho que vai dar pé.
-- Deus?
-- O que?
-- Fé? Deus?
-- Não, não, eu disse dar pé, acho que vai funcionar, a história.
-- Bom, bom.
Ele suspira. Eu também.
-- Então, você estuda marketing?
Ele faz uma cara estranha.
-- O que?
-- Marketing, você não disse que estuda marketing?
Ele pega um dicionário eletrônico na mochila, escreve alguma coisa, me mostra. Está escrito marketing. Faço sim com a cabeça.
-- Não! Não! Eu estudo propaganda!
E não é a mesma coisa?
-- Ah... E você quer trabalhar com mar... com propaganda?
-- Bom, não sei, eu, eu já trabalhei com sló.
-- Sló?
-- Sim, sló.
Ele escreve uma coisa lá no dicionário e me mostra. Stocks. Ações, acho.
-- Ah, você gritando, telefone, vende,compra, compra, vende?
Ele diz que sim com a cabeça e começa uma longa sentença da qual só capto algumas palavras:
-- Sló... Camisetas... Meu amigo... Voltei... Muito caro... Vermelho, e tal... Um ano... Bélgica não mesmo, ah, Bélgica não... Muito chato.
E mostra um colar. Será que ele trabalhou no estoque de alguma loja? Uma loja belga? Desencano.
-- Ah.
Silêncio.
-- Então, o que vocês comem no seu país?
É sempre assim. É o sexto chinês (ou chinesa) com quem saio, eles são todos muito gentis e solícitos, mas tem a muralha da China cultural e linguística entre nós e bobeou a gente sempre cai nesse diálogo CCAA. Parecemos dois lobotomizados conversando. O cara do Laranja Mecânica depois da experiência, sabe? Sem humor, sem malícia.
-- Várias coisas. Churrasco... Mas o prato principal é arroz, feijão, salada, carne. E um ovo. Em cima, assim.
-- Carne?
-- Carne.
-- O que é carne?
-- É carne, é... Bife.
-- Ah, bife! Arroz, feijão, salada, bife, ovo. Tudo junto?
Como assim, tudo junto? Ontem pedi macarrão com porco e tinha uns camarões no meio!
-- É, junto.
-- Não, quero dizer, todo dia?
-- Ah, não, não todo dia. A gente come outras coisas, muito peixe.
-- De mar ou de rio?
-- Os dois.
-- E os de rio também são assim, grandes?
-- Grandes, como assim?
Onde ele escutou eu dizer que os peixes eram grandes???
-- Não, a gente come peixes grandes e pequenos.
-- E você gosta de peixes grandes e pequenos?
Caralho, que tipo de pergunta é essa? Será que é um código na China para saber se eu sou bi?
-- Eu gosto de peixe.
-- Hummmm...
Silêncio. A coisa definitivamente não anda, é como ir de São Paulo ao Rio em Primeira. Passando por Belo Horizonte. Usando cachaça como combustível. E abrindo só um olho. Acho que os dois estão com preguiça de puxar papo. Peço mais uma cerveja. Ele toma a iniciativa.
-- Sabe, aquele dia, a Vivian, minha amiga... Bêbada, muito. Primeira vez eu Viviam ver bêbada assim naquele dia.
-- Sério? Mas ela muito bêbada já quando eu aqui?
-- Ponto de ônibus. Muito bêbada. Dois anos eu Vivian sem ver.
-- Mas ela já esta...
Ah, desisti. Peguei o cardápio e pedi uma comida.
-- O seu hotel é perto?
-- É, é perto.
-- Eu sei. Eu gosto andar aí rua pequena vira outra ver tudo quando andar aí hotel seu outro dia.
-- Você foi no meu hotel?
Será que era ele? Quando o cara me ligou de manhã e disse “your friend is waiting in the second floor, breakfast?”.
-- Eu andar rua pequena ver por aí hotel seu.
-- Mas você foi lá???
-- Não, só ver onde é.
Será que ele foi e agora tá com vergonha de dizer?
-- Eu gostar peixe. Aham. Muito.
Ah não! Vamos começar com a aula do Yazigi sobre comida outra vez?! Se Leo me entendesse, eu poderia pegar um palito na mesa e começar a quebrá-lo, dizer, olha, Leo, não é você, somos nós dois, eu acho que essa relação não tá indo pra frente, entende? Sinto que tem uma barreira entre nós e acho que a gente não vai superar essa barreira, sabe? Provavelmente ele iria me olhar com essa mesma cara que me olha e eu o olho e perguntar:
-- Banheira?
Pedimos a conta logo depois. Certas banheiras linguísticas são mais intransponíveis que a Migalha da China.
8 Comments:
Simplesmente adorei. Parabéns!
Oi Antonio...descobri sua coluna essa semana atraves da Cris. To adorando ler suas impressoes sobre Shanghai e os chineses!
Sou a Dani, a guria baixinha que namora o chines grande...aquele que voce perguntou se era o Charles na entrada daquela balada que estava parecendo uma festinha do "The OC" na sexta-feira passada!
Entao...queria te chamar pra bater um papo dia desses...de repente a gente vai num cafe e da umas risadas. Meu tel eh 13564953249. Dah um toque qdo vir!
beijocas e parabens de novo :)
muito boa essa! mas assim, vai ver q ele queria fazer alguma conexão.. tipo, mandarim peixe.. peixe-mandarim.. sei lá.. pescou? =)
Ri muito com a forma como você descreve sua angústia em estabelecer um diálogo mínimo com o chinês:
"Silêncio. A coisa definitivamente não anda, é como ir de São Paulo ao Rio em Primeira. Passando por Belo Horizonte. Usando cachaça como combustível. E abrindo só um olho. Acho que os dois estão com preguiça de puxar papo."
Perfeito.
Foi mal. Esse construir brincando aí acima é um blog que eu edito.
Meu nome é Marcelo.
Muito bom, boy!
Bom pra baralho!
rsrsrs
Muito bom seu texto. Dei muita risada.
são esse tipos de texto, sinceros, espontâneos, simples e diferentes que fazem de você o grande escritor que é.
Adooro suas colunas.
Prabéns.
Bjo
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