MODELOS
Eles fazem parte do mundo, pensei, eu não. As modelos e os jogadores mostraram a pequenez da Vila Madalena, das discussões pueris sobre a Lei Rouanet, o Espaço Unibanco de cinema, esse mundo à parte que a gente acha que é todo o mundo e se não se deslocar e olhar de fora acaba acreditando que é mesmo e pode acabar um idiota completo.
Não, eles são o mundo, eu não. Eu nunca chorei sozinho nas Filipinas, aos quinze anos, tendo deixado Rio do Norte, SC, para trás, ao ouvir a produtora local dizendo que eu era shit! Shit! Shit! Eu não tenho que pagar multa se chego depois das dez na concentração, nem estou morando num país sem falar a língua e sendo enganado pelo meu empresário enquanto tento juntar dinheiro para ajudar minha mulher e minha filha de sete meses no Brasil.
Então pareceu que era eu quem vinha do mundo do glamour e dos holofotes, enquanto as modelos e os jogadores carregavam o piano nas costas: bravas formigas operárias do moinho midiático.
Se eu fizesse parte do mundo -- essa coisa do meu umbigo para lá -- não me esforçava tanto para ler o caderno Mais! ou Aliás ou um livro cabeludo onde um antropólogo ou sociólogo tenta me dizer, com suas intrincadas teses e complexos sistemas: veja o mundo, Antonio, ele é assim. Quem faz parte dele não quer entendê-lo.
As modelos e os jogadores brasileiros me contavam as suas histórias gentilmente, me mostrando como era o mundo, enquanto tomavam refrigerante no quadragésimo andar de um dos seis prédios de um condomínio mastodôntico a leste de Xangai. E me salvaram, pelo menos por ora, do perigo de tornar-me uma besta auto-centrada.
“Gente, a casa toda desarrumada! Carol, tira essas meias da janela que tem uma celebridade aqui!”, disse a Fernanda, de Santa Catarina, que me conhecia pelos textos da Capricho. Eu queria pedir desculpas, dizer parabéns, vocês são heroínas, tão novas, tão fortes, enfrentando essa enrascada com sorriso no rosto e pele de criança, eu não, eu não faço nada, eu só anoto aqui nesse bloquinho. E elas iam me falando...
“Se você não tem um book legal até uma certa altura da sua vida, você vem pra Ásia. Faz catálogo de pijama, umas fotos bregas, mas ganha dinheiro. Não adianta ficar no Brasil, no meio daquela concorrência, ouvindo não em casting. Hoje eu sei até onde eu posso chegar, onde não posso. Já me ferrei muito, já ouvi produtor dizendo que ou eu fazia plástica no nariz ou podia desistir de ser modelo, já tive agência que me proibia de sair de casa a noite. Na Alemanha eu morei com uma mulher tão louca, mas tão louca, que um dia eu abri o congelador e tinha um gato morto. Saí dali na hora, liguei chorando pra minha mãe no Brasil, dizendo que queria voltar, ela disse calma, filha, vai dar tudo certo. Hoje eu sei como as coisas funcionam, sou madura”. Quantos anos você tem? “Dezessete”.
“Eu tenho 24 anos, não tenho filho nem mulher. Se eu fizer um bom campeonato aqui, posso ser chamado pra um time da primeira divisão, posso ir para um outro país. Eu faço o que eu gosto, cara, eu jogo bola, quanta gente pode dizer isso? Que faz o que gosta? É difícil pra caralho. A gente veio aqui com promessa de que ia ter um apartamento para cada um. Faz dois meses, cadê? A gente come na cantina da faculdade. Tem dia que só dá pra comer o arroz. Outro dia eu liguei pra minha mãe e disse, mãe, tá no viva voz? O pai tá aí? É o seguinte, eu amo muito vocês, muito. E comecei a chorar. Fiquei meia hora chorando no telefone, é foda, mas fazer o que? Estamos aí. Pros outros dois jogadores brasileiros é mais difícil. O Fernando quer trazer a mulher dele, mas para morar com a gente no quarto do hotel? Agora a mulher dele tá brava, acha que ele não quer que ela venha, tá ligado? O Robson teve que voltar, tá com a filhinha de sete meses no Brasil, a mulher ligou falando que ela tá com problema de saúde, ele foi na hora, deixou até dinheiro para trás.”
“Eu saí de Araçatuba com 15 anos. Já morei na Tailândia, nas Filipinas, Singapura, na Grécia, agora aqui. Minha mãe é que queria que eu fosse modelo, eu queria sair de casa, então topei. A gente se acostuma. Hoje eu gosto. É uma vida dura, mas eu gosto. Quero juntar dinheiro para pagar minha faculdade, quero comprar um apartamento. Que outra profissão, na minha idade, dá pra pensar nisso? Se a gente dá sorte pega uma campanha de xampu, acorda de manhã, vai lá, faz assim com a cabeça, ó, e pode ganhar 30 mil dólares. Não é fácil, mas pode aparecer uma coisa assim”.
Diante da grandeza existencial dessas meninas, desses caras que saem de mala nas costas pelo mundo e vêm parar na China, tentando fazer o melhor trabalho possível e lidando com feitores escrotos, cafetões e cafetinas de outros séculos que tocam no chicote o que no fim das contas resulta em catálogos de lojas cheirosas e espetáculos esportivos bacanas, vejo de novo os andaimes de bambu. Andaimes de bambu, em torno dos lindos prédios de cem andares. Andaimes de bambu, moinho de moer gente, capitalismo global, cazzo, o mundo é cruel pra caralho.
Não, eles são o mundo, eu não. Eu nunca chorei sozinho nas Filipinas, aos quinze anos, tendo deixado Rio do Norte, SC, para trás, ao ouvir a produtora local dizendo que eu era shit! Shit! Shit! Eu não tenho que pagar multa se chego depois das dez na concentração, nem estou morando num país sem falar a língua e sendo enganado pelo meu empresário enquanto tento juntar dinheiro para ajudar minha mulher e minha filha de sete meses no Brasil.
Então pareceu que era eu quem vinha do mundo do glamour e dos holofotes, enquanto as modelos e os jogadores carregavam o piano nas costas: bravas formigas operárias do moinho midiático.
Se eu fizesse parte do mundo -- essa coisa do meu umbigo para lá -- não me esforçava tanto para ler o caderno Mais! ou Aliás ou um livro cabeludo onde um antropólogo ou sociólogo tenta me dizer, com suas intrincadas teses e complexos sistemas: veja o mundo, Antonio, ele é assim. Quem faz parte dele não quer entendê-lo.
As modelos e os jogadores brasileiros me contavam as suas histórias gentilmente, me mostrando como era o mundo, enquanto tomavam refrigerante no quadragésimo andar de um dos seis prédios de um condomínio mastodôntico a leste de Xangai. E me salvaram, pelo menos por ora, do perigo de tornar-me uma besta auto-centrada.
“Gente, a casa toda desarrumada! Carol, tira essas meias da janela que tem uma celebridade aqui!”, disse a Fernanda, de Santa Catarina, que me conhecia pelos textos da Capricho. Eu queria pedir desculpas, dizer parabéns, vocês são heroínas, tão novas, tão fortes, enfrentando essa enrascada com sorriso no rosto e pele de criança, eu não, eu não faço nada, eu só anoto aqui nesse bloquinho. E elas iam me falando...
“Se você não tem um book legal até uma certa altura da sua vida, você vem pra Ásia. Faz catálogo de pijama, umas fotos bregas, mas ganha dinheiro. Não adianta ficar no Brasil, no meio daquela concorrência, ouvindo não em casting. Hoje eu sei até onde eu posso chegar, onde não posso. Já me ferrei muito, já ouvi produtor dizendo que ou eu fazia plástica no nariz ou podia desistir de ser modelo, já tive agência que me proibia de sair de casa a noite. Na Alemanha eu morei com uma mulher tão louca, mas tão louca, que um dia eu abri o congelador e tinha um gato morto. Saí dali na hora, liguei chorando pra minha mãe no Brasil, dizendo que queria voltar, ela disse calma, filha, vai dar tudo certo. Hoje eu sei como as coisas funcionam, sou madura”. Quantos anos você tem? “Dezessete”.
“Eu tenho 24 anos, não tenho filho nem mulher. Se eu fizer um bom campeonato aqui, posso ser chamado pra um time da primeira divisão, posso ir para um outro país. Eu faço o que eu gosto, cara, eu jogo bola, quanta gente pode dizer isso? Que faz o que gosta? É difícil pra caralho. A gente veio aqui com promessa de que ia ter um apartamento para cada um. Faz dois meses, cadê? A gente come na cantina da faculdade. Tem dia que só dá pra comer o arroz. Outro dia eu liguei pra minha mãe e disse, mãe, tá no viva voz? O pai tá aí? É o seguinte, eu amo muito vocês, muito. E comecei a chorar. Fiquei meia hora chorando no telefone, é foda, mas fazer o que? Estamos aí. Pros outros dois jogadores brasileiros é mais difícil. O Fernando quer trazer a mulher dele, mas para morar com a gente no quarto do hotel? Agora a mulher dele tá brava, acha que ele não quer que ela venha, tá ligado? O Robson teve que voltar, tá com a filhinha de sete meses no Brasil, a mulher ligou falando que ela tá com problema de saúde, ele foi na hora, deixou até dinheiro para trás.”
“Eu saí de Araçatuba com 15 anos. Já morei na Tailândia, nas Filipinas, Singapura, na Grécia, agora aqui. Minha mãe é que queria que eu fosse modelo, eu queria sair de casa, então topei. A gente se acostuma. Hoje eu gosto. É uma vida dura, mas eu gosto. Quero juntar dinheiro para pagar minha faculdade, quero comprar um apartamento. Que outra profissão, na minha idade, dá pra pensar nisso? Se a gente dá sorte pega uma campanha de xampu, acorda de manhã, vai lá, faz assim com a cabeça, ó, e pode ganhar 30 mil dólares. Não é fácil, mas pode aparecer uma coisa assim”.
Diante da grandeza existencial dessas meninas, desses caras que saem de mala nas costas pelo mundo e vêm parar na China, tentando fazer o melhor trabalho possível e lidando com feitores escrotos, cafetões e cafetinas de outros séculos que tocam no chicote o que no fim das contas resulta em catálogos de lojas cheirosas e espetáculos esportivos bacanas, vejo de novo os andaimes de bambu. Andaimes de bambu, em torno dos lindos prédios de cem andares. Andaimes de bambu, moinho de moer gente, capitalismo global, cazzo, o mundo é cruel pra caralho.
2 Comments:
Eu costumo desprezar essas profissões como cúmulo da futilidade e, realmente, o destino da maioria dos aspirantes prova que é uma carreira de pouco glamour, poucas recompensas decentes para poucas pessoas (mas qual não é? Literatura é mais ou menos assim também, só que a gente se ferra nos frilas em vernáculo). E ainda assim há os que teimam em prosseguir... há uma certa grandeza nessa pequenez e você enxergou bem, o seu livro está aí com certeza, e pode crer que vou comprar.
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