HOMEM ARANHA x COWBOY
Hoje eu saí andando por aí. Chega de programas, de roteiros, abaixo o Lonely Planet. Só tenho mais dez dias aqui e chegou a hora de parar de tentar me encontrar e começar a me perder. Só quero saber do turismo que seja libertação! Foi Walter Benjamin quem disse que o único jeito de conhecer uma cidade era perdendo-se nela? Mundo mundo lonely mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução. Mundo mundo lonely mundo, mais lonely é meu coração.
Uma rima pode não ser uma solução, mas já é alguma coisa. Se a poesia é o supra sumo do espanto, a essência do nosso puta-que-o-pariu-nascemos-e-logo-morreremos-e-essa-coisa-toda-não-faz-o-menor-sentido -- o mantra que cantam os que não crêem --, a rima é uma espécie de prêmio de consolação. A gente lê: ficar, lar, potiguar, amar, bar, raiar, so far e logo acredita que essa semelhança, essa melodia, que é a rima, também é semelhança e melodia na vida, que as coisas rimam, se irmanam, há algum sentido, enfim. Mas aqui eu não me chamo Raimundo e Raimundo tampouco rima com o mundo. Nada rima por aqui.
Saí entrando em vielas e em vielas que saíam das vielas e davam em outras vielas. Vi jardins lindíssimos e esgotos a céu aberto, cozinhas sujas onde cinco homens sujos cortavam legumes e uma moto desmontada abandonada entre cadeiras de bambu, entrei numa biblioteca no meio da quebrada, olhei pra cima e vi linguiças sendo curtidas penduradas num ar-condicionado. Há um BMW parado na frente de um cortiço e um cortiço estacionado ao lado de uma loja chique. Há panelas e bicicletas espalhadas pela cidade. Pra que tanta, panela, meu Deus?, pergunta meu coração. A falta de ordem me perturba. Não há hierarquia possível, não há ordem, nem rima, só coisas e mais coisas umas depois das outras. Talvez o inferno seja assim, coisas e mais coisas umas depois das outras, sem a possibilidade de uma compilação. Os condenados ficariam então, como Sísifos de uma repartição infinita, perguntando a si próprios “guidão de bicicleta vai na sessão de bicicletas ou com as direções de automóveis?”, “cinco mil cabides vai na sessão de vestuário ou no guichê de objetos à granel?”, “Ô Anderson, tem aqui uma chupeta, uma exemplar de O Capital e uma samambaia morta, em cima de uma geladeira quebrada, é lixo ou instalação?”. (Sei que estou me repetindo, mas preciso, estou tentando fazer justamente essa compilação. Inferno!).
Há entre nós e o mundo uma teia chamada cultura. A gente olha para as coisas e dá sentido a elas. É como se a gente atirasse fios de significado, como o Homem Aranha faz, e dissesse panela, zupt!, mãe, zupt!, porteiro, zupt!, nosso carro, zupt!, esquina, zupt!, pão preto, zupt!, Fernando Sabino, zupt! e aos poucos temos a teia de significados sob nossos pés e por elas nos movemos. (Não, a gente sequer toca o mundo, a gente só pisa na teia).
Eu significo tudo, logo tudo me significa. Sei o que sou e sou o que sou pelos pontos onde minha teia está grudada. Ser estrangeiro, estar num país tão diferente, mesmo que por pouco tempo, é como andar sem a teia. Da minha pele para dentro há um mundo com canções e cheiros e sabores e abraços e sistemas, da minha pele para fora há outro mundo com outras canções e cheiros, sistemas incompreensíveis e abraços inalcançáveis.
Nós, aranhas, queremos a teia. Queremos significado. Em poucos dias já estou grudado ao quarto, à lojinha da esquina, aos recém conhecidos. Há pontes de significado e afeto entre mim e o mundo. Poucas, frágeis, mas há. Se não estabelecemos essas conexões enlouquecemos, a não ser que sejamos cowboys.
Daí o fascínio pelos cowboys. Não é porque eles sacam a arma mais rápido e matam os inimigos, é porque eles não precisam de ninguém. Carregam o mundo no bolso. Aranhas desgarradas, vão andando, indo, indo, em silêncio. É um herói ou um amaldiçoado?
Percebi ontem, enquanto comia uma sopa de macarrão e carne, que no fundo todos esses laços, mesmo aqueles nos quais mais cremos, são frágeis e artificiais. Tá, é obvio, todo mundo sabe, mas ontem eu soube mais, eu soube de verdade. Nos agarramos desesperadamente às coisas, às pessoas, aos amores (esse fio tão forte, o mais forte, talvez?), mas no fim estamos sós, aqui, aí, em qualquer lugar.
Não, não é que não tenhamos mais ninguém além de nós mesmos: é pior, não temos nada. Tá vendo esse abajur aí no canto? Há um abismo entre ele e você. Tentar transpor esse abismo é o que a gente tem feito, desde que o mundo é mundo, vasto mundo. Mas se eu me chamasse Raimundo, seria apenas uma rima, não uma solução: o abismo é intransponível.
Uma rima pode não ser uma solução, mas já é alguma coisa. Se a poesia é o supra sumo do espanto, a essência do nosso puta-que-o-pariu-nascemos-e-logo-morreremos-e-essa-coisa-toda-não-faz-o-menor-sentido -- o mantra que cantam os que não crêem --, a rima é uma espécie de prêmio de consolação. A gente lê: ficar, lar, potiguar, amar, bar, raiar, so far e logo acredita que essa semelhança, essa melodia, que é a rima, também é semelhança e melodia na vida, que as coisas rimam, se irmanam, há algum sentido, enfim. Mas aqui eu não me chamo Raimundo e Raimundo tampouco rima com o mundo. Nada rima por aqui.
Saí entrando em vielas e em vielas que saíam das vielas e davam em outras vielas. Vi jardins lindíssimos e esgotos a céu aberto, cozinhas sujas onde cinco homens sujos cortavam legumes e uma moto desmontada abandonada entre cadeiras de bambu, entrei numa biblioteca no meio da quebrada, olhei pra cima e vi linguiças sendo curtidas penduradas num ar-condicionado. Há um BMW parado na frente de um cortiço e um cortiço estacionado ao lado de uma loja chique. Há panelas e bicicletas espalhadas pela cidade. Pra que tanta, panela, meu Deus?, pergunta meu coração. A falta de ordem me perturba. Não há hierarquia possível, não há ordem, nem rima, só coisas e mais coisas umas depois das outras. Talvez o inferno seja assim, coisas e mais coisas umas depois das outras, sem a possibilidade de uma compilação. Os condenados ficariam então, como Sísifos de uma repartição infinita, perguntando a si próprios “guidão de bicicleta vai na sessão de bicicletas ou com as direções de automóveis?”, “cinco mil cabides vai na sessão de vestuário ou no guichê de objetos à granel?”, “Ô Anderson, tem aqui uma chupeta, uma exemplar de O Capital e uma samambaia morta, em cima de uma geladeira quebrada, é lixo ou instalação?”. (Sei que estou me repetindo, mas preciso, estou tentando fazer justamente essa compilação. Inferno!).
Há entre nós e o mundo uma teia chamada cultura. A gente olha para as coisas e dá sentido a elas. É como se a gente atirasse fios de significado, como o Homem Aranha faz, e dissesse panela, zupt!, mãe, zupt!, porteiro, zupt!, nosso carro, zupt!, esquina, zupt!, pão preto, zupt!, Fernando Sabino, zupt! e aos poucos temos a teia de significados sob nossos pés e por elas nos movemos. (Não, a gente sequer toca o mundo, a gente só pisa na teia).
Eu significo tudo, logo tudo me significa. Sei o que sou e sou o que sou pelos pontos onde minha teia está grudada. Ser estrangeiro, estar num país tão diferente, mesmo que por pouco tempo, é como andar sem a teia. Da minha pele para dentro há um mundo com canções e cheiros e sabores e abraços e sistemas, da minha pele para fora há outro mundo com outras canções e cheiros, sistemas incompreensíveis e abraços inalcançáveis.
Nós, aranhas, queremos a teia. Queremos significado. Em poucos dias já estou grudado ao quarto, à lojinha da esquina, aos recém conhecidos. Há pontes de significado e afeto entre mim e o mundo. Poucas, frágeis, mas há. Se não estabelecemos essas conexões enlouquecemos, a não ser que sejamos cowboys.
Daí o fascínio pelos cowboys. Não é porque eles sacam a arma mais rápido e matam os inimigos, é porque eles não precisam de ninguém. Carregam o mundo no bolso. Aranhas desgarradas, vão andando, indo, indo, em silêncio. É um herói ou um amaldiçoado?
Percebi ontem, enquanto comia uma sopa de macarrão e carne, que no fundo todos esses laços, mesmo aqueles nos quais mais cremos, são frágeis e artificiais. Tá, é obvio, todo mundo sabe, mas ontem eu soube mais, eu soube de verdade. Nos agarramos desesperadamente às coisas, às pessoas, aos amores (esse fio tão forte, o mais forte, talvez?), mas no fim estamos sós, aqui, aí, em qualquer lugar.
Não, não é que não tenhamos mais ninguém além de nós mesmos: é pior, não temos nada. Tá vendo esse abajur aí no canto? Há um abismo entre ele e você. Tentar transpor esse abismo é o que a gente tem feito, desde que o mundo é mundo, vasto mundo. Mas se eu me chamasse Raimundo, seria apenas uma rima, não uma solução: o abismo é intransponível.
9 Comments:
regettrytr
Oh, Antonio... mal aí!!! Sem querer postei esse monte de letras aleatórias no seu blog!
Meu nome é Isabel, sou de São Paulo... muito prazer! Tenho lido diariamente os seus textos e gostado muito deles. Puxa, vc tem estado um tanto melancólico e saudoso. Mas também, amigo, vc foi se meter aí no meio da China sozinho... deve dar uma agonia fenomenal em alguns momentos. Ainda não li as últimas coisas postadas (o Homem Aranha x Cowboy e o outro). Depois falo mais... beijo e sorte aí!!
Duca. Se eu fosse você e fosse o cronista que você é (o que seria um pleonasmo) não escrevia romance cousa nenhuma. Se eu fosse você juntava todos esses posts com cola pritt, escrevia mais alguns de permeio e entregava assim mesmo: a busca malfodida de um amor na China. Simples assim.
Grandabraço,
que perfeito esse.
adoro quanto algum texto seu me faz pensar em coisas de um jeito que nunca tinha pensado antes...em quase todos acontece isso.
aproveite o resto dos dias aí.
e volte com sua história de amor pra nos contar!
:**
Antonio, querido, dessa vez você se superou. O Joca tá certo. Isso é um livro pronto, espetacular, e mais uma tese de doutorado na garupa. Beijos
Fala, Antonio. Prazer, Marcelo.
Descobri o blog do Amores Expressos tem uns 3 dias. Tinha tentado ler um post seu antes, mas não cheguei até o fim, ou se cheguei não me marcou como esse. Porque esse, vou te falar, heim, pegou na veia.
Sou do Rio, casado, dois filhos pequenos, atolado de trabalho para entregar este mês - e o trabalho em questão envolve textos, perfis que exigem uma inspiração que, nestes dias, sinto que tem me faltado, talvez porque não tenho tido chance de me exilar um tantinho da rotina.
Talvez esteja procurando isso neste blog, a sensação inigualável - e sempre fascinante, sempre difícil de traduzir - de estar estrangeiro.
Só queria dizer, enfim, que ler tuas palavras, neste momento, me oxigenaram a alma.
Parecia que eu tava ouvindo minha voz interior. As palavras fluindo. Uma depois da outra, honestas, sem afetação.
Obrigado, cara. Aproveita o que resta dessa viagem.
"Só quero saber do turismo que seja libertação"!
Oi Antonio,
Eh a Cris (sim a do taxi) =p
Faco minhas suas palavras, a China eh um mundo a parte, mas vc acostuma, cinco meses aqui e jah ateh gosto hehehe
A saudade, o saudasismo, a "noia", bate mesmo, sem hora ou lugar...
No findi vc ainda tah ai, neh?
Dah uma ligada que saimos e deixamos um pouco da "dor" pra tras!
Beijos
Antonio, concordo com o Joca & outros ao ler, atrasada, esta crônica. Vc é muito bom, e se não pintar romance, as crônicas já estão de bom tamanho, aliás, parece que estão voltando à moda com toda a força, até a Flip vai prestigiar. Eu adoro. É o que faço.
Grande beijo. Espero que ao voltar ao brz vc continue a franquear as suas no blog.
guidão de bicicleta vai na sessão de bicicletas já que bicicleta não é um automóvel, eu acho.
Não consegui prestar atenção no resto do texto depois disso.
Não sei, não consigo me imaginar lendo um romance seu.. pelo menos não um romance comum, se é que se pode generalizar um romance... ahh enfim..
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