CALDEIRÃO DA BRUXA
A viagem vai terminando e estou esgotado. Sinto-me como no fim de uma rave: o dia amanhecendo, o ácido ainda batendo, eu todo sujo, grama no cabelo, aquele olhar bobo de quem teve a grande revelação sobre a verdade do universo mas já esqueceu, querendo agora apenas olhar para o lado sem descobrir mais nenhum mundo paralelo, labirinto semântico. Por favor, Deus, uma parede branca que seja uma parede branca que seja uma parede branca.
Nesse espírito fim de festa, saí me arastando, ontem, lá pela meia-noite, em direção ao abraço amigo de um Big Mac. Como se o McDonald’s fosse a embaixada de um país neutro a me dar asilo antes que começassem os bombardeios de descobertas culturais. Ah, que maravilha, ter uma refeição que não viesse acompanhada de nenhuma idéia para texto! Ah, que ilusão, ter uma refeição que não viesse acompanhada de nenhuma idéia para texto!
Ilusão porque o Saci, esse meu companheiro inseparável, no pior espírito de animador de piscina em Club Med, começou a gritar lá do alto de seu observatório no Pudong: não acabou! Ainda faltam três dias, vamos lá, ânimo! E então construiu, no tempo em que eu percorria dois quarteirões, ao lado do McDonald’s, um restaurante de Hot Pot. (Mais tarde o Saci me confessaria que erguer o restaurante em três minutos foi mais fácil do que convencer os garçons a abri-lo àquela hora. A maioria das cozinhas, aqui, fecha às dez, mesmo aos sábados).
Hot Pot é isso aí, Pote Quente. É mais do que uma comida, é todo um conceito, uma parafernália e uma aventura à qual o viajante, saindo da rave, não deve se atirar. Mas o Saci...
Eu sabia, eu sabia, eu sabia no que estava me metendo. Estava entrando num troço complexo sobre o qual eu não entendia nada, que requeriria várias decisões envolvendo levas e levas dos mais variados ingredientes e que bastava um pequeno deslize para dar perda total na refeição ou, quem sabe, pôr fogo no restaurante.
A primeira coisa que entendi, depois de uns cinco minutos básicos daquele teatro do absurdo de cada dia, com o auxílio de uma garçonete muito prática e simpática (é que o negócio era complexo mesmo), era que tinha que escolher o caldo base da minha panela. Havia, por baixo, umas doze opções.
O cardápio também estava em inglês. Se tivesse tirado o TOEFL, entenderia tudo, mas como larguei a Cultura Inglesa pouco depois do FCE, só compreendia metade das explicações – e metade, em situações como desarmar uma bomba ou pedir comida na China, equivale a zero. Por exemplo: um caldo dizia algo como “Chicken lirgles”. A gente sempre vai de chicken nesses enroscos gastro-culturais, achando que é inofensivo, mas e se o tal do lirgles fosse trompas, por exemplo? Caldo de trompa de frango? (E, pelo tamanho de um ovo, trompa de frango deve ser quase como uma meia calça infantil...) Outra opção era beef blundsteamed steew. Beef é beef, steew é ensopado, ótimo, 76,666% de aproveitamento, mas se o companheiro blundsteamed for, sei lá, uma secreção do pâncreas? Game over, bum!, acabou a refeição. (É sempre bom desconfiar das dízimas periódicas, principalmente as que repetem 666 ao infinito).
Analisei a situação com cuidado e consegui perceber que, ao contrário de muitos cardápios aqui, aquele ia numa ordem crescente de complexidade. (Vejam só, análise de códigos, estratégias militares, isso realmente cansa). Não só os nomes ficavam maiores como apareciam mais coisas desconhecidas como lirgles e blundsteameds conforme ia descendo. Tinha um pork com uns quatro sobrenomes e um sea food bloomlasts norgstimnests que eu não quis nem chegar perto...
Agarrei firme na teoria da complexidade crescente e pedi o primeiro caldo. A garçonete sorriu -- que nem minha analista, quando tínhamos uma boa sessão e queria me dizer, viu só, Antonio, as coisas melhoram, deixa de ser catastrófico. Sorri de volta. Então ela disse algo e deu um suspiro, sorridente e cansado, e eu entendi perfeitamente que ela dizia: “bom, queridão, agora que você escolheu o caldo, faltam só todos os ingredientes que virão dentro. Eu também sorri, suspirei e, quinze minutos depois, enxugávamos nossos suores com as toalhinhas umedecidas que eles têm aqui e conseguimos comemorar o fechamento do pedido: um hot pot com o primeiro caldo, fatias finas de carne, macarrão de arroz e um mix de cogumelos. Quase falei “foi bom pra você?”, mas ela não entenderia e eu ainda não estava pronto para uma segunda rodada.
O pote veio e só aí entendi tanto empenho do Saci. Hot Pot, meus amados e saudosos patrícios, é o caldeirão da bruxa. Um caldo vermelho (sangue de morcego?), apimentado (língua de dragão?), com coisas boiando (vamos chamar assim, coisas, com essa neutralidade, para não espantar a freguesia) e afundadas que, bem, eu nem sabia que existiam na natureza. Como se aquilo que conhecemos como moela fosse apenas um representante – o mais careta --, de toda uma cornucópia de miúdos com os quais até então eu não tinha cruzado. Havia tofu, mas havia coisas que... opa, isso não é tofu. Cubos do tamanho de uma caixa de fósforo, fibrosos. Havia uns pequenos tubos amarrados, espécies de macumbinha de chinchullines. Como no caso das moelas, nenhum dos objetos não identificados vinha sozinho, todos traziam seus primos, primas, tias, tios e até parentes distantes, que a gente ficava na dúvida se pertenciam à família das gosmas marrons ou da turminha dos fibrosos acinzentados. Fiquei brincando de remexer o caldeirão borbulhante por um tempo, até chegarem os meus ingredientes. Belíssimas fatias de carne, bem finas. Uma cesta de cogumelos que parecia capa de revista de culinária, o inofensivo macarrão de arroz. Joguei tudo lá dentro. A garçonete ainda fez a gentileza de se aproximar, apontar a carne e dizer: “no time”, e eu entendi que era só jogar ali e tirar, senão passava do ponto. E, como sempre aqui na China, comi maravilhosamente bem. Deixei uma boa gorjeta para aquela alma caridosa, que me ajudou na exegese do cardápio e fui para casa feliz. Quando dizem assim, “se joga!”, acho que é isso que eles estão querendo dizer, né? Caldeirão da Bruxa. Isso é que é esporte radical, o resto é bobagem
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Hot Pot é isso aí, Pote Quente. É mais do que uma comida, é todo um conceito, uma parafernália e uma aventura à qual o viajante, saindo da rave, não deve se atirar. Mas o Saci...
Eu sabia, eu sabia, eu sabia no que estava me metendo. Estava entrando num troço complexo sobre o qual eu não entendia nada, que requeriria várias decisões envolvendo levas e levas dos mais variados ingredientes e que bastava um pequeno deslize para dar perda total na refeição ou, quem sabe, pôr fogo no restaurante.
A primeira coisa que entendi, depois de uns cinco minutos básicos daquele teatro do absurdo de cada dia, com o auxílio de uma garçonete muito prática e simpática (é que o negócio era complexo mesmo), era que tinha que escolher o caldo base da minha panela. Havia, por baixo, umas doze opções.
O cardápio também estava em inglês. Se tivesse tirado o TOEFL, entenderia tudo, mas como larguei a Cultura Inglesa pouco depois do FCE, só compreendia metade das explicações – e metade, em situações como desarmar uma bomba ou pedir comida na China, equivale a zero. Por exemplo: um caldo dizia algo como “Chicken lirgles”. A gente sempre vai de chicken nesses enroscos gastro-culturais, achando que é inofensivo, mas e se o tal do lirgles fosse trompas, por exemplo? Caldo de trompa de frango? (E, pelo tamanho de um ovo, trompa de frango deve ser quase como uma meia calça infantil...) Outra opção era beef blundsteamed steew. Beef é beef, steew é ensopado, ótimo, 76,666% de aproveitamento, mas se o companheiro blundsteamed for, sei lá, uma secreção do pâncreas? Game over, bum!, acabou a refeição. (É sempre bom desconfiar das dízimas periódicas, principalmente as que repetem 666 ao infinito).
Analisei a situação com cuidado e consegui perceber que, ao contrário de muitos cardápios aqui, aquele ia numa ordem crescente de complexidade. (Vejam só, análise de códigos, estratégias militares, isso realmente cansa). Não só os nomes ficavam maiores como apareciam mais coisas desconhecidas como lirgles e blundsteameds conforme ia descendo. Tinha um pork com uns quatro sobrenomes e um sea food bloomlasts norgstimnests que eu não quis nem chegar perto...
Agarrei firme na teoria da complexidade crescente e pedi o primeiro caldo. A garçonete sorriu -- que nem minha analista, quando tínhamos uma boa sessão e queria me dizer, viu só, Antonio, as coisas melhoram, deixa de ser catastrófico. Sorri de volta. Então ela disse algo e deu um suspiro, sorridente e cansado, e eu entendi perfeitamente que ela dizia: “bom, queridão, agora que você escolheu o caldo, faltam só todos os ingredientes que virão dentro. Eu também sorri, suspirei e, quinze minutos depois, enxugávamos nossos suores com as toalhinhas umedecidas que eles têm aqui e conseguimos comemorar o fechamento do pedido: um hot pot com o primeiro caldo, fatias finas de carne, macarrão de arroz e um mix de cogumelos. Quase falei “foi bom pra você?”, mas ela não entenderia e eu ainda não estava pronto para uma segunda rodada.
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19 Comments:
Tenho horror a comidas esquisitas das quais desconheço os ingredientes Eu iria morrer de fome aí. Ou, pelo menos, emagrecer bastante. É, pensando assim, até que não seria mal...
finalmente encontrou a tal da lama!
=P
parabens!
nossa, antonio, fazia tempo qeu eu não vinha aqui no seu blog. mas agora eu quero é ir pra china já! por favor, ministro, eu nunca te pedi nada!
Antônio, tu é muuuuuuuuuuito engraçado, fiquei aqui morrendo de rir, sozinha, gargalhadas mesmo! Faz 2 meses que vim morar no Japão e de vez em quando me deparo com coisas estranhas feito esse hot pot aí! bjos!
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