O RESTO É JUJUBA
Escurece, o que em Xangai significa que começa a ficar claro. De dia eu me confundo. As vielas, as bicicletas, as churrasqueiras com espetinhos, os fios e uma eterna névoa branca -- que não sei se é maresia ou uma fumaça atômica das fábricas dos arredores -- criam uma espécie de mormaço visual. De noite, pelo contrário, os prédios acendem as luzes, as carcaças de bicicletas, peixes e frangos abandonados pelas calçadas somem, os outdoors de plasma gritam marcas de cueca, de carros, de perfume, onde chineses e chinesas quase imperceptivelmente orientais sorriem, vencedores. A noite é nítida, o dia, obscuro. Mas ainda não escureceu, só começou.
A torre do hotel Meridien nem ligou suas luzinhas, que percorrem todas as quinas, debaixo até o topo, como se fosse uma árvore de natal perdida no meio de maio. A Pearl Tower nem começou com sua histeria colorida e as janelas daquele prédio no Pudong, com seu luminoso escrito Aurora, ainda são apenas janelas: em poucos minutos se transformarão numa televisão gigante, projetando para multidões embasbacadas, do lado de cá do rio Huang Pu, imagens de peixinhos dourados, Monet, uísque, os girassóis de Van Gogh, Buick, a Monalisa, Ford, Matisse, Audi e outras conquistas da civilização. (De noite, Aurora acende-se. Obrigado, paisagem, por ceder imagens assim, na bandeja, a esse esforçado escritor).
Vejo tudo pela janela do táxi, a uns 20 metros de altura, num desses minhocões que cruzam a cidade e fazem o nosso enfadonho Elevado Costa e Silva parecer uma larvinha. O táxi segue em velocidade de cruzeiro. Vou em direção ao M 50, umas fábricas transformadas em estúdios e galerias de arte, ambiente descolex aqui de Xangai.
No rádio toca um pop romântico, espécie de Sandy e Júnior, meloso, grudento -- deve ser tema da dupla romântica da novela que vi ontem, na tv do meu quarto. Presto menos atenção na paisagem e mais na música. Ouço então uma fungada. Logo seguida de outra. Olho no retrovisor e me dou conta de que o taxista está chorando. Chora baixinho, contido, tentando segurar, mas as lágrimas rolam. Não sei bem o que fazer. Volto a olhar para a paisagem, tento focar no horizonte meio branco, meio roxo, de Gothan City, não quero ser indiscreto, mas é difícil, pelo menos para mim, ficar a cinquenta centímetros de uma pessoa chorando e fingir que nada está acontecendo. Mais difícil ainda porque o choro vai aumentado. Ele agora deixa o pranto vir. Será que foi a música?
Se não houvesse uma redoma de plástico que o separa de mim, eu poria a mão no seu ombro, num gesto universal de “estamos aí, amigão, fica assim não, vai passar, cê vai arrumar outra muito mais legal que ela, vai ver só, essa aí não merece seu choro”. Não é um choro desesperado, é um choro triste. Se for por amor, ele parece ter certeza de que perdeu a mulher. Não parece dor de corno. Não há raiva ali. Há dor, e há a consciência de que essa dor é incontornável. Mas como é que eu posso afirmar essas coisas? Posso estar completamente enganado. Ele pode estar puto, pode querer matar alguém, pode ter perdido alguém, descoberto uma doença, demitido do emprego, despejado da casa, sei lá.
Eu evito olhar para o retrovisor, onde vejo sua cara, mas é inevitável, para todo lado que eu olho enxergo aquele retangulozinho de dor. Num desses olhares furtivos ele me pesca e fixa seus olhos nos meus. Não parece ter vergonha. Acho até que era o que queria, pois começa a desabafar. Lao xu tié! Magu xuô xuô dzáááá! Xu-ô dzázázá!
Ele sabe que aquilo não significa absolutamente nada para mim, mas ele não se importa. Ele está na merda e começa a me contar com detalhes, com peso em cada sílaba incompressível, como foi que a Lyin chegou para ele e disse há meia hora que tinha desistido do casamento, e como ele amava a Lyin, e como ele sabia que ela era a mulher da vida dele e como ele até tinha pedido um empréstimo no banco hoje de manhã para dar a ela aquele vestido de casamento branco que um dia eles viram no shopping e ela tinha gostado tanto. Hoje de manhã! E agora ela chega pra ele e Tsa biem diam luuuu, dzi tam tem lun jou juon!!!
Quem sabe ele esteja me falando que a ex-mulher entrou na justiça e o proibiu de ver o filho, porque ele bebe, ele bebe e faz cagada e esse fim de semana ele levou o moleque no Century Park e enquanto o moleque ia na roda-gigante e no carrinho de bate-bate ele tomou todas ali com o cara dos espetinhos, e secou uma garrafa de pei jo e chapou e quando acordou cadê o moleque? O garoto tinha chorado e um policial conseguiu contatar a mãe e agora ele não podia chegar a menos de 500 metros do filho. Quinhentos metros, porra, gringo, você acredita que o filho da puta do juiz fez isso comigo? Como é que eu vou fazer agora? Eu to fodido, esse táxi não é meu, eu não tenho mulher, eu bebo, só tinha meu filho e agora nada, nem isso?!
Nesse ponto ele começou a dar socos no volante, eu tive um sentimento egoísta e temi pela minha segurança. (Egoísmo, aliás, absolutamente justificável, porque me solidarizo com as dores alheias só até o momento em que elas ameaçam jogar-me num carro a oitenta por hora de uma altura de vinte metros contra o sexto andar de um edifício espelhado. Cinematograficamente ia ser bonito, Rodrigo, mas o filme, o meu filme, acabava aí). Felizmente, acho que ele também temeu por nossa segurança, pois parou de dar murros no volante e fez o impensável: parou o carro na pista da esquerda do minhocão, puxou o freio de mão e saiu. Imediatamente formou-se uma fila atrás do nosso carro, todo mundo buzinando, um escarcéu. Então ele encarou os carros e começou a gritar, a esbravejar, a dizer buzinem, seus filhos da puta, passem por cima, eu to pouco me fodendo, sem a Lyin ou sem meu filho essa porra dessa vida de merda não vale a pena! Ele era agora como aquele estudante que enfrentou a coluna de tanques na praça da Paz Celestial, era um homem sozinho contra as máquinas, um coração partido parando a via expressa da maior avenida da maior cidade do maior país do mundo, puta merda, meu taxista é demais, eu pensei, é isso aí, puta coragem, sofrer por amor é isso, o resto é jujuba, meu livro é sobre ele! Eu preciso entrevistar esse cara!
Ouvi então uma sirene de polícia, ele também, porque entrou no carro rapidinho e arrancou. O choro parou. Procurei um lenço de papel na mochila para oferecer a ele, mas não tinha. Eu queria dar alguma coisa para ele, fazer algum gesto de solidariedade, dizer que eu não era apenas um turista gringo ali no carro dele, mas que eu também tinha minhas dores, meus pés na bunda, que eu estava escrevendo sobre isso agora, que minha ex-namorada estava grávida e ia se casar com o cara, um arquiteto bacaninha, que passa pomada no cabelo e faz uns desenhozinhos transadinhos num caderno moleschini -- e pior de todo é que era um cara legal, meu chapa, e os desenhos são bons.
Mas eu não disse nada. Nós chegamos ao nosso destino, fui pegar o dinheiro e foi então que me lembrei: estava com meu último livro na mochila. Era para dar pro Everton, jogador de futebol, mas o Everton ia entender, ele é um cara sensível, quando eu contasse a história ele iria até ficar feliz em saber que o seu livro serviu a esse propósito. Então peguei o livro, abri na orelha, apontei a foto e apontei para mim. Ele entendeu. Sorriu, de leve. Passei o livro por cima da redoma, ele olhou, apontou a foto, disse qualquer coisa e me devolveu. Eu disse “tó, take it, é seu”. Ele fez que não com a cabeça, ainda tentei mais um pouco, mas não teve jeito, parecia um insulto ele ficar com o livro, como se eu tentasse dar a ele algo muito valioso. Peguei o livro e nos olhamos nos olhos, como a cumplicidade de duas pessoas que acabam de passar por uma situação limite juntos, dois sobreviventes de um acidente ou algo assim. Ele sustentou o olhar, não estava nada envergonhado, nem devia. Acho que ele viu em meus olhos também que eu o considerava um herói, que estava ao seu lado. Não tive coragem de pedir a nota.
A galeria era OK, mas os quadros pelas paredes me pareceram absolutamente frios vazios. Brincadeiras de criança. Estavam todos mortos, atropelados pelo meu taxista.
A torre do hotel Meridien nem ligou suas luzinhas, que percorrem todas as quinas, debaixo até o topo, como se fosse uma árvore de natal perdida no meio de maio. A Pearl Tower nem começou com sua histeria colorida e as janelas daquele prédio no Pudong, com seu luminoso escrito Aurora, ainda são apenas janelas: em poucos minutos se transformarão numa televisão gigante, projetando para multidões embasbacadas, do lado de cá do rio Huang Pu, imagens de peixinhos dourados, Monet, uísque, os girassóis de Van Gogh, Buick, a Monalisa, Ford, Matisse, Audi e outras conquistas da civilização. (De noite, Aurora acende-se. Obrigado, paisagem, por ceder imagens assim, na bandeja, a esse esforçado escritor).
Vejo tudo pela janela do táxi, a uns 20 metros de altura, num desses minhocões que cruzam a cidade e fazem o nosso enfadonho Elevado Costa e Silva parecer uma larvinha. O táxi segue em velocidade de cruzeiro. Vou em direção ao M 50, umas fábricas transformadas em estúdios e galerias de arte, ambiente descolex aqui de Xangai.
No rádio toca um pop romântico, espécie de Sandy e Júnior, meloso, grudento -- deve ser tema da dupla romântica da novela que vi ontem, na tv do meu quarto. Presto menos atenção na paisagem e mais na música. Ouço então uma fungada. Logo seguida de outra. Olho no retrovisor e me dou conta de que o taxista está chorando. Chora baixinho, contido, tentando segurar, mas as lágrimas rolam. Não sei bem o que fazer. Volto a olhar para a paisagem, tento focar no horizonte meio branco, meio roxo, de Gothan City, não quero ser indiscreto, mas é difícil, pelo menos para mim, ficar a cinquenta centímetros de uma pessoa chorando e fingir que nada está acontecendo. Mais difícil ainda porque o choro vai aumentado. Ele agora deixa o pranto vir. Será que foi a música?
Se não houvesse uma redoma de plástico que o separa de mim, eu poria a mão no seu ombro, num gesto universal de “estamos aí, amigão, fica assim não, vai passar, cê vai arrumar outra muito mais legal que ela, vai ver só, essa aí não merece seu choro”. Não é um choro desesperado, é um choro triste. Se for por amor, ele parece ter certeza de que perdeu a mulher. Não parece dor de corno. Não há raiva ali. Há dor, e há a consciência de que essa dor é incontornável. Mas como é que eu posso afirmar essas coisas? Posso estar completamente enganado. Ele pode estar puto, pode querer matar alguém, pode ter perdido alguém, descoberto uma doença, demitido do emprego, despejado da casa, sei lá.
Eu evito olhar para o retrovisor, onde vejo sua cara, mas é inevitável, para todo lado que eu olho enxergo aquele retangulozinho de dor. Num desses olhares furtivos ele me pesca e fixa seus olhos nos meus. Não parece ter vergonha. Acho até que era o que queria, pois começa a desabafar. Lao xu tié! Magu xuô xuô dzáááá! Xu-ô dzázázá!
Ele sabe que aquilo não significa absolutamente nada para mim, mas ele não se importa. Ele está na merda e começa a me contar com detalhes, com peso em cada sílaba incompressível, como foi que a Lyin chegou para ele e disse há meia hora que tinha desistido do casamento, e como ele amava a Lyin, e como ele sabia que ela era a mulher da vida dele e como ele até tinha pedido um empréstimo no banco hoje de manhã para dar a ela aquele vestido de casamento branco que um dia eles viram no shopping e ela tinha gostado tanto. Hoje de manhã! E agora ela chega pra ele e Tsa biem diam luuuu, dzi tam tem lun jou juon!!!
Quem sabe ele esteja me falando que a ex-mulher entrou na justiça e o proibiu de ver o filho, porque ele bebe, ele bebe e faz cagada e esse fim de semana ele levou o moleque no Century Park e enquanto o moleque ia na roda-gigante e no carrinho de bate-bate ele tomou todas ali com o cara dos espetinhos, e secou uma garrafa de pei jo e chapou e quando acordou cadê o moleque? O garoto tinha chorado e um policial conseguiu contatar a mãe e agora ele não podia chegar a menos de 500 metros do filho. Quinhentos metros, porra, gringo, você acredita que o filho da puta do juiz fez isso comigo? Como é que eu vou fazer agora? Eu to fodido, esse táxi não é meu, eu não tenho mulher, eu bebo, só tinha meu filho e agora nada, nem isso?!
Nesse ponto ele começou a dar socos no volante, eu tive um sentimento egoísta e temi pela minha segurança. (Egoísmo, aliás, absolutamente justificável, porque me solidarizo com as dores alheias só até o momento em que elas ameaçam jogar-me num carro a oitenta por hora de uma altura de vinte metros contra o sexto andar de um edifício espelhado. Cinematograficamente ia ser bonito, Rodrigo, mas o filme, o meu filme, acabava aí). Felizmente, acho que ele também temeu por nossa segurança, pois parou de dar murros no volante e fez o impensável: parou o carro na pista da esquerda do minhocão, puxou o freio de mão e saiu. Imediatamente formou-se uma fila atrás do nosso carro, todo mundo buzinando, um escarcéu. Então ele encarou os carros e começou a gritar, a esbravejar, a dizer buzinem, seus filhos da puta, passem por cima, eu to pouco me fodendo, sem a Lyin ou sem meu filho essa porra dessa vida de merda não vale a pena! Ele era agora como aquele estudante que enfrentou a coluna de tanques na praça da Paz Celestial, era um homem sozinho contra as máquinas, um coração partido parando a via expressa da maior avenida da maior cidade do maior país do mundo, puta merda, meu taxista é demais, eu pensei, é isso aí, puta coragem, sofrer por amor é isso, o resto é jujuba, meu livro é sobre ele! Eu preciso entrevistar esse cara!
Ouvi então uma sirene de polícia, ele também, porque entrou no carro rapidinho e arrancou. O choro parou. Procurei um lenço de papel na mochila para oferecer a ele, mas não tinha. Eu queria dar alguma coisa para ele, fazer algum gesto de solidariedade, dizer que eu não era apenas um turista gringo ali no carro dele, mas que eu também tinha minhas dores, meus pés na bunda, que eu estava escrevendo sobre isso agora, que minha ex-namorada estava grávida e ia se casar com o cara, um arquiteto bacaninha, que passa pomada no cabelo e faz uns desenhozinhos transadinhos num caderno moleschini -- e pior de todo é que era um cara legal, meu chapa, e os desenhos são bons.
Mas eu não disse nada. Nós chegamos ao nosso destino, fui pegar o dinheiro e foi então que me lembrei: estava com meu último livro na mochila. Era para dar pro Everton, jogador de futebol, mas o Everton ia entender, ele é um cara sensível, quando eu contasse a história ele iria até ficar feliz em saber que o seu livro serviu a esse propósito. Então peguei o livro, abri na orelha, apontei a foto e apontei para mim. Ele entendeu. Sorriu, de leve. Passei o livro por cima da redoma, ele olhou, apontou a foto, disse qualquer coisa e me devolveu. Eu disse “tó, take it, é seu”. Ele fez que não com a cabeça, ainda tentei mais um pouco, mas não teve jeito, parecia um insulto ele ficar com o livro, como se eu tentasse dar a ele algo muito valioso. Peguei o livro e nos olhamos nos olhos, como a cumplicidade de duas pessoas que acabam de passar por uma situação limite juntos, dois sobreviventes de um acidente ou algo assim. Ele sustentou o olhar, não estava nada envergonhado, nem devia. Acho que ele viu em meus olhos também que eu o considerava um herói, que estava ao seu lado. Não tive coragem de pedir a nota.
A galeria era OK, mas os quadros pelas paredes me pareceram absolutamente frios vazios. Brincadeiras de criança. Estavam todos mortos, atropelados pelo meu taxista.
9 Comments:
sensacional
extremamente fantastico!!
q seja apenas o primeiro capitulo dos outros cada vez melhores...
parabens!
Ce ta escrevendo muito, mano!
com jujuba ou sem jujuba isso aqui tá bom demais!
o que eu acho interessante é ver um livro nascendo, e depois ler o resultado sabendo de onde veio aquilo tudo: taí um bom uso pra blog de escritor, espero que continue mesmo no pós-China. sem brincadeira, Antonio, se tiver um tempo, lê meu post de ontem, há algo desta soliedariedade entre estranhos, estranha coincidência:
http://www.noga.blog.br/2007/05/pelo-celular.htm. Beijo.
Olá Antonio, tudo bem ?!
Estou procurando os tais cadernos Moleschini, só que não acho em nenhum lugar, só no seu blog... Já q é o único que conhece, tem alguma idéia de como posso encontrar ??? Mande-me um email para conversarmos: lutimenezes@gmail.com
Obrigado e parabéns pelo blog.
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