CRÔNICA DO GUIA DO ESTADÃO
Firma reconhecida
Uma das páginas mais belas que já li é aquela na qual Winston Smith, protagonista de 1984, vê uma lavadeira pendurando roupas e cantando no quintal. Winston sabe que a música foi feita por máquinas à serviço do Grande Irmão, que tem tanta poesia quanto um chiclete Ploc, nutrientes, mas a mulher a interpreta com tamanho sentimento que transforma o pop cibernético em uma obra de arte.
Apesar dos pesares, acho 1984 um livro otimista. Me diz que, mesmo sob a mais atroz das ditaduras, ainda são possíveis histórias de amor. E que, até embaixo da mais gomarábica das canções, é possível achar uma centelha poética.
Outro dia, num cartório, presenciei o surgimento de uma dessas centelhas. Até então, eu achava que o contrário da poesia era um cartório. Inferno do Grande Irmão, reino de carimbos, senhas, crachás, grampeadores e outras miudezas sobre as quais jamais se escreverá um soneto, uma peça para violoncelo e oboé, um episódio de Friends. Prisão onde as letras, que nasceram todas iguais perante Deus e poderiam ter virado romance, carta de amor ou receita de bolo, acabam emboloradas em gavetas escuras, delimitando áreas de terrenos e cláusulas de divórcios. Acreditava, acima de tudo, que de onde saem milhares de procurações, jamais brotaria uma gota de poesia.
Então o funcionário, que trouxe meu documento, foi colocar nele sua assinatura. Assim que encostou a ponta da esferográfica no papel e, com um movimento de todo o corpo, fez um círculo, eu percebi que estava diante da lavadeira de 1984. Depois desse movimento – amplo, gracioso, como toureiro que, com sua capa, driblasse a bovina burocracia --, ele cravou a BIC no início do círculo e, de uma maneira frenética e calculada, fez uma espécie de rabisco, como aqueles desenhos de sismógrafos, até o final do laço inicial. (Agora não mais toureiro, mas maestro descabelado regendo o fim de uma sinfonia). Quando terminou e ergueu-se, arfante, julguei ouvir bumbo e pratos e um ou outro grito de bravo! do pessoal do almoxarifado.
Meus caros, eu estava diante de um escrivão apaixonado. De um homem que, em meio àquele mingau cinzento de impessoalidade, lutava quixotescamente, com sua BIC, para deixar sua assinatura no mundo. Era Winston Smith e a lavadeira. Tinha apenas um pequeno retângulo de papel para gritar ao universo sua revolta e sua felicidade por estar vivo e vingar-se, bela e inutilmente, da morte. E o fazia.
Uma das páginas mais belas que já li é aquela na qual Winston Smith, protagonista de 1984, vê uma lavadeira pendurando roupas e cantando no quintal. Winston sabe que a música foi feita por máquinas à serviço do Grande Irmão, que tem tanta poesia quanto um chiclete Ploc, nutrientes, mas a mulher a interpreta com tamanho sentimento que transforma o pop cibernético em uma obra de arte.
Apesar dos pesares, acho 1984 um livro otimista. Me diz que, mesmo sob a mais atroz das ditaduras, ainda são possíveis histórias de amor. E que, até embaixo da mais gomarábica das canções, é possível achar uma centelha poética.
Outro dia, num cartório, presenciei o surgimento de uma dessas centelhas. Até então, eu achava que o contrário da poesia era um cartório. Inferno do Grande Irmão, reino de carimbos, senhas, crachás, grampeadores e outras miudezas sobre as quais jamais se escreverá um soneto, uma peça para violoncelo e oboé, um episódio de Friends. Prisão onde as letras, que nasceram todas iguais perante Deus e poderiam ter virado romance, carta de amor ou receita de bolo, acabam emboloradas em gavetas escuras, delimitando áreas de terrenos e cláusulas de divórcios. Acreditava, acima de tudo, que de onde saem milhares de procurações, jamais brotaria uma gota de poesia.
Então o funcionário, que trouxe meu documento, foi colocar nele sua assinatura. Assim que encostou a ponta da esferográfica no papel e, com um movimento de todo o corpo, fez um círculo, eu percebi que estava diante da lavadeira de 1984. Depois desse movimento – amplo, gracioso, como toureiro que, com sua capa, driblasse a bovina burocracia --, ele cravou a BIC no início do círculo e, de uma maneira frenética e calculada, fez uma espécie de rabisco, como aqueles desenhos de sismógrafos, até o final do laço inicial. (Agora não mais toureiro, mas maestro descabelado regendo o fim de uma sinfonia). Quando terminou e ergueu-se, arfante, julguei ouvir bumbo e pratos e um ou outro grito de bravo! do pessoal do almoxarifado.
Meus caros, eu estava diante de um escrivão apaixonado. De um homem que, em meio àquele mingau cinzento de impessoalidade, lutava quixotescamente, com sua BIC, para deixar sua assinatura no mundo. Era Winston Smith e a lavadeira. Tinha apenas um pequeno retângulo de papel para gritar ao universo sua revolta e sua felicidade por estar vivo e vingar-se, bela e inutilmente, da morte. E o fazia.
17 Comments:
Lindo o texto!
Mas achei o que o final de 1984 acabou com o ultimo pingo de otimismo que alguem no meio do livro ainda tinha conservado...
Amanda, para mim, o fim não importa. Num totalitarismo perfeito, nem o começo da história seria possível.
droga, li 1984 versão resumida da 'penguin books'
Eu adoro ler suas crônicas e essa particularmente eu amei, ficou maravilhosa, mandei pra uma maiga minha que é muito fã de 1984. Parabéns
Muito bom o texto!!!!
Sempre haverá poesia quando colocamos amor no que fazemos ...
Paulinha
http://www.fazendohora.blogger.com.br
A burocracia nos traz segurança: a certeza de que tudo tem um porcedimento, de que as coisas seguem seu caminho, de que alguém já previu uma situação como aquela. Não importa o fim; os meios estarão seguros. Outro dia pensei se Deus era o bem supremo (e portanto oposição ao mal: "livrai-nos do mal, amém") ou só o destino. Engraçado você falar de novo em cartórios... A crônica da "Gostosa" também fala deles.
Cara, você conseguiu a mesma coisa com este post.
O verdadeiro poeta é aquele que sabe ver a beleza nas insignificâncias do mundo.
(uma mistura de Rilke com MAnoel de Barros...)
Movimento pela libertação das letras encarceradas nos fichários dos cartórios! Carimbos para todos!
Reconhecimento de firma é o *%#@" !
Como assim você consegue ver poesia num cartório?
Sabe Antonio? Há muito tempo eu queria ter um blogue, já tinha até criado o endereço, mas nunca tinha escrito nada. O seu blogue e uns outros ótimos que eu leio quando fico de saco muito cheio aqui no trabalho me inspiraram. Valeu!
Beijo
Que coisa, eu também adoro esta página. Exatamente esta. É momentos antes dele ser preso no quartinho de encontros...
Que lindo.
Vc viu poesia até onde o Manuel Bandeira não via ... rs
[Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor ...]
Gosto dos dois.
:)
Vai lá ver! http://naoautorizada.blogspot.com/
Oi Antônio! Você já leu "Todos os Nomes" do Saramago? Lembrei deste livro ao ler o seu texto!
beijos
Sabe adorei o texto e o blog,esses chineses são realmente chineses, muito estranho! putz muito boa.Eu li uma vez um conto seu sobre um controle remoto.Você não gostava que embrulhassem o controle em plástico para não sujar eu acho, algo assim.Enfim eu queria ler de novo e passar para uns amigos, mas não acho nem a pau.Parabens pelo trabalho.Beijos
nossa, mas como vc vai ao cartório hein?
bjs
Cara, só vc mesmo pra achar poesia na assinatura de um funcionário de cartório (tipo, mosca-do-cavalo-do-bandido, não é, mas é assim que parece, sabe?) Agora vc se superou! Parabéns!
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