COISA, COISA, COISA
Se me perguntassem agora: como é aí na China? -- eu diria: tem coisa pra caralho. Como assim, coisa? Assim, cara, tem coisa pra caralho aqui na China. Não sei se é porque eles estão acumulando há 5, 6 mil anos, mas o fato é que para todo lugar que a gente olha tem coisa, coisa, coisa. E todo tipo de coisa.
Você tá andando na rua e tem uma quantidade infinita de coisas: cartazes, portas, fios, vitrines, engradados, sacos, roupas penduradas, lanternas, logos, bicicletas, motos, frutas, cds, dvds, enormes woks fritando bolinhos, panelas gigantes de bambu com bolinhos sendo feitos no vapor, pessoas indo para todos os lados ao mesmo tempo e por todas as superfícies (uma moto passa pela calçada com um carregamento de cinco mil cabides coloridos, carros vão na contramão, um riquixá cruza tudo aparentemente ignorando qualquer noção de caminho e levando um armário em cima de um piano coberto por um poster da Pepsi). Aí você entra numa portinha discreta, nessa rua, e ela dá para um corredor entre várias casas, onde há várias portas e mais corredores para outras casas e corredores, e você tem a certeza – não a impressão, mas a certeza – de que se continuar a entrar por essas portas vai cair sempre num outro corredor cheio de portas. Ontem e antes de ontem eu e o Tadeu Jungle -- que veio aqui fazer o documentário sobre o projeto -- ficamos entrando por essas portas e filmando e fotografando esses corredores e saímos convencidos de que são labirintos sem começo, nem meio, nem fim, nem tempo.
Veja, não são corredores e portas de pesadelo kafkaniano, limpos, simétricos e fascistas, não é o pesadelo do século XX, mas delírios de outros milênios, sono narcótico de ópio do século XIX, pesadelo do século XXI: são corredores e portas de conto do Borges, de As mil e uma noites, de Blade Runner, de Delicatessen, de Alice no país das maravilhas, é uma bagunça tão caótica que fica esotérica. Dá a impressão de que se acharmos a porta certa encontraremos Deus, ou cem virgens do Xá da Pérsia, ou mísseis terra-ar russos, ou a gente mesmo, com três anos de idade, cento e quatro ou quinze minutos atrás.
Os corredores são espaços de convivência, ruas-cidade-do-interior-cozinha-banheiro-playground-armário-lixo-depósito-jardim, então pelos cantos há panelas, ao lado de um motor empoeirado de mobilete, um par de sapatos pendurados, uma escova de dentes perdida, duas galinhas, roupas e mais roupas secado, uma espinha de peixe com cabeça e rabo, uma gaiola dourada com um gato preto dentro, vasos de porcelana e um rádio tocando ópera chinesa ou música pop, enquanto quatro velhos meio sujos jogam majong fumam desde 1925, cospem e são simpáticos. Ni hau.
Andando por esses corredores tenho a impressão – não, a certeza -- de que sempre estive na epiderme das cidades e agora ando por seus órgãos internos. Os canos saem das paredes em todo lado e em cada cano há um tipo de plástico ou borracha ou pano enrolado e em torno do plástico ou borracha ou pano enrolado tem um arame ou corda ou fio e sobre tudo isso respingos de tinta de diferentes décadas e poeira das mais diversas espécies, de maneira que eu tenho a impressão – não, tenho a certeza – de que se me debruçar sobre um palmo desses canos também cairei num outro labirinto de coisas, como se as coisas tivesses popups para mais coisas. E se os fosse abrindo até olhar num microscópio eletrônico a última fração possível da matéria acharia ali um portinha, que daria para um corredor e voltaria para meu labirinto.
Mônadas, me disseram que chama isso. É? Não sei, mas é enlouquecedor, é exaustivo. Ao olhar para cima também vejo que nesse curto espaço aéreo, entre meus olhos e o telhado das casas, há um emaranhado de fios, cordas de varais, bambus com roupas penduradas, guarda-chuvas velhos, uma roda de bicicleta e mais muitas outras coisas, coisas, coisas, em diversos estados de degeneração: coisas novas, coisas abandonadas, ciosas sendo feitas, comida crua, comida podre. Mas quem é que vira um prato de macarrão ou abandona uma moto, assim, na frente da casa do visinho? Dá a impressão de que se o governo chinês promovesse uma faxina coletiva, ou simplesmente fizesse a campanha “se essa bicicleta com estalactites de poeira não é de ninguém vamos jogar fora, pessoal?” juntariam tanta coisa, mas tanta coisa, coisa, coisa, que teriam que invadir a Coréia só para usar como aterro sanitário. Ou fundiriam todo o metal e fariam outra muralha da China, agora de norte a sul. Como disse o Tadeu, com os olhos brilhando feito criança e filmando pelos cotovelos, “cada palmo que você mira é um mundo. É tudo cenográfico!”.
Ai você quer desistir de ficar nesse mundo doido e entra num restaurante. Abre o cardápio e, porra, de novo! Quanta coisa! Você não sabe o que escolher, porque as coisas no cardápio, assim como nas ruas, nos corredores e no céu, são uma bagunça. Tem “sopa de água viva com broto de bambu”, seguido por “fatias de carne de cabrito com molho de ostra ao estilo de Sischuan”, “Arroz da águia ao por do sol”, “Limonada” – com uma etiqueta por cima com algo escrito em chinês. Será que acabou o limão? --, “sapo rei apimentado”, “churrasco de lula” e assim vai por páginas e páginas. Algumas coisas vêm com foto e escrito em chinês e inglês. Outras só com foto, mas sem inglês, outras em chinês e sem foto, outras em inglês sem foto. Coisa, coisa, coisa. Você pede três pratos mas vêm sete, porque sempre acompanha mais alguma coisa.
Eu não sei o que é frango, o que é vaca e o que é sapo. Não sei o que é verdadeiro, o que é cópia. Não sei o que eles tão falando e se essa estação é aquela ou aquela outra. Eu não sei qual das sete histórias de amor que criei vou escrever. Eu não sei qual das sete histórias de amor que vivi eu deveria ter continuado vivendo. Ou será que não deveria ter vivido alguma delas? Eu não sei se quero ficar sozinho ou abro o msn. Fico dias em silêncio e agora pulam sete janelas simultâneas, de sete pessoas importantes em diferentes momentos da minha vida, que me perguntam: Antonio, você tá bem aí? Como é a China?
Confusão, confusão, confusão. Coisa, coisa, coisa. Não quero mais entender nada. Não dá pra entender. Pessoal, vamos fazer um esforço, vamos organizar isso aí! Ou então me tragam alguém que explique esse Aleph chinês, que mostra todas as coisas de todos os tempos, mas cujo ponto não é do tamanho de uma bola de gude, mas uma cidade de 18 milhões de habitantes. Ou do tamanho de minha cabeça, esse Aleph com problemas de sintonia. Po, Rodrigo. Caramba, Cuenca. Por que vocês não me mandaram para Huston, Curitiba ou Mogi das Cruzes, hein? Que coisa.
Você tá andando na rua e tem uma quantidade infinita de coisas: cartazes, portas, fios, vitrines, engradados, sacos, roupas penduradas, lanternas, logos, bicicletas, motos, frutas, cds, dvds, enormes woks fritando bolinhos, panelas gigantes de bambu com bolinhos sendo feitos no vapor, pessoas indo para todos os lados ao mesmo tempo e por todas as superfícies (uma moto passa pela calçada com um carregamento de cinco mil cabides coloridos, carros vão na contramão, um riquixá cruza tudo aparentemente ignorando qualquer noção de caminho e levando um armário em cima de um piano coberto por um poster da Pepsi). Aí você entra numa portinha discreta, nessa rua, e ela dá para um corredor entre várias casas, onde há várias portas e mais corredores para outras casas e corredores, e você tem a certeza – não a impressão, mas a certeza – de que se continuar a entrar por essas portas vai cair sempre num outro corredor cheio de portas. Ontem e antes de ontem eu e o Tadeu Jungle -- que veio aqui fazer o documentário sobre o projeto -- ficamos entrando por essas portas e filmando e fotografando esses corredores e saímos convencidos de que são labirintos sem começo, nem meio, nem fim, nem tempo.
Veja, não são corredores e portas de pesadelo kafkaniano, limpos, simétricos e fascistas, não é o pesadelo do século XX, mas delírios de outros milênios, sono narcótico de ópio do século XIX, pesadelo do século XXI: são corredores e portas de conto do Borges, de As mil e uma noites, de Blade Runner, de Delicatessen, de Alice no país das maravilhas, é uma bagunça tão caótica que fica esotérica. Dá a impressão de que se acharmos a porta certa encontraremos Deus, ou cem virgens do Xá da Pérsia, ou mísseis terra-ar russos, ou a gente mesmo, com três anos de idade, cento e quatro ou quinze minutos atrás.
Os corredores são espaços de convivência, ruas-cidade-do-interior-cozinha-banheiro-playground-armário-lixo-depósito-jardim, então pelos cantos há panelas, ao lado de um motor empoeirado de mobilete, um par de sapatos pendurados, uma escova de dentes perdida, duas galinhas, roupas e mais roupas secado, uma espinha de peixe com cabeça e rabo, uma gaiola dourada com um gato preto dentro, vasos de porcelana e um rádio tocando ópera chinesa ou música pop, enquanto quatro velhos meio sujos jogam majong fumam desde 1925, cospem e são simpáticos. Ni hau.
Andando por esses corredores tenho a impressão – não, a certeza -- de que sempre estive na epiderme das cidades e agora ando por seus órgãos internos. Os canos saem das paredes em todo lado e em cada cano há um tipo de plástico ou borracha ou pano enrolado e em torno do plástico ou borracha ou pano enrolado tem um arame ou corda ou fio e sobre tudo isso respingos de tinta de diferentes décadas e poeira das mais diversas espécies, de maneira que eu tenho a impressão – não, tenho a certeza – de que se me debruçar sobre um palmo desses canos também cairei num outro labirinto de coisas, como se as coisas tivesses popups para mais coisas. E se os fosse abrindo até olhar num microscópio eletrônico a última fração possível da matéria acharia ali um portinha, que daria para um corredor e voltaria para meu labirinto.
Mônadas, me disseram que chama isso. É? Não sei, mas é enlouquecedor, é exaustivo. Ao olhar para cima também vejo que nesse curto espaço aéreo, entre meus olhos e o telhado das casas, há um emaranhado de fios, cordas de varais, bambus com roupas penduradas, guarda-chuvas velhos, uma roda de bicicleta e mais muitas outras coisas, coisas, coisas, em diversos estados de degeneração: coisas novas, coisas abandonadas, ciosas sendo feitas, comida crua, comida podre. Mas quem é que vira um prato de macarrão ou abandona uma moto, assim, na frente da casa do visinho? Dá a impressão de que se o governo chinês promovesse uma faxina coletiva, ou simplesmente fizesse a campanha “se essa bicicleta com estalactites de poeira não é de ninguém vamos jogar fora, pessoal?” juntariam tanta coisa, mas tanta coisa, coisa, coisa, que teriam que invadir a Coréia só para usar como aterro sanitário. Ou fundiriam todo o metal e fariam outra muralha da China, agora de norte a sul. Como disse o Tadeu, com os olhos brilhando feito criança e filmando pelos cotovelos, “cada palmo que você mira é um mundo. É tudo cenográfico!”.
Ai você quer desistir de ficar nesse mundo doido e entra num restaurante. Abre o cardápio e, porra, de novo! Quanta coisa! Você não sabe o que escolher, porque as coisas no cardápio, assim como nas ruas, nos corredores e no céu, são uma bagunça. Tem “sopa de água viva com broto de bambu”, seguido por “fatias de carne de cabrito com molho de ostra ao estilo de Sischuan”, “Arroz da águia ao por do sol”, “Limonada” – com uma etiqueta por cima com algo escrito em chinês. Será que acabou o limão? --, “sapo rei apimentado”, “churrasco de lula” e assim vai por páginas e páginas. Algumas coisas vêm com foto e escrito em chinês e inglês. Outras só com foto, mas sem inglês, outras em chinês e sem foto, outras em inglês sem foto. Coisa, coisa, coisa. Você pede três pratos mas vêm sete, porque sempre acompanha mais alguma coisa.
Eu não sei o que é frango, o que é vaca e o que é sapo. Não sei o que é verdadeiro, o que é cópia. Não sei o que eles tão falando e se essa estação é aquela ou aquela outra. Eu não sei qual das sete histórias de amor que criei vou escrever. Eu não sei qual das sete histórias de amor que vivi eu deveria ter continuado vivendo. Ou será que não deveria ter vivido alguma delas? Eu não sei se quero ficar sozinho ou abro o msn. Fico dias em silêncio e agora pulam sete janelas simultâneas, de sete pessoas importantes em diferentes momentos da minha vida, que me perguntam: Antonio, você tá bem aí? Como é a China?
Confusão, confusão, confusão. Coisa, coisa, coisa. Não quero mais entender nada. Não dá pra entender. Pessoal, vamos fazer um esforço, vamos organizar isso aí! Ou então me tragam alguém que explique esse Aleph chinês, que mostra todas as coisas de todos os tempos, mas cujo ponto não é do tamanho de uma bola de gude, mas uma cidade de 18 milhões de habitantes. Ou do tamanho de minha cabeça, esse Aleph com problemas de sintonia. Po, Rodrigo. Caramba, Cuenca. Por que vocês não me mandaram para Huston, Curitiba ou Mogi das Cruzes, hein? Que coisa.
7 Comments:
nossa(!)... mônadas... pertubador...
Tonim...
Não te mandaram para a China, mas, pelo visto, para o reino perdido do Beleléu. Sabe quando a gente perde algum objeto e as pessoas dizem que ele foi para o Beleléu. Pois é... é aí que você está: no lugar para onde vão todas as coisas e todos os objetos perdidos. Pessoas perdidas e esquecidas acabam indo praí também.
Mas não se preocupe, a gente te resgata.
Take care, bro.
É isso mesmo. Eu estou no Beleléu. E como estou perdido, sou mais uma coisa. Céus!
A sua angustia ta tão visível neste texto... Acho que um dos mais honestos textos que li ultimamente.
Imagino (mentira, não imagino) como deve ser estar sozinho não em uma cultura diferente, mas em um mundo completamente a parte, tendo que desenvolver uma história de amor.
Se em uma semana em Paris já paramos a beça pra pensar na vida, o que dizer de um mês na China?
e pensar no contraste da fevilhante Pequin com os templos e os campos de arroz do interior.
Caro escritor, se voltar são será um milagre!
Só uma pergunta sobre o projeto, você escreverá todo um livro ou "apenas" um conto?
Boa sorte!
Não sabia q vc ia pra China, li faz pouco tempo, quando vim me atualizar das suas crônicas.
Me apaixonei por esse seu "Diário", e to acompanhando todos. Esse acho que foi o que mais mexeu comigo.
Não consigo nem calcular o tamanho da sua angústia. Mas é, sem dúvida, uma experiência única.
Ia te mandar e-mail, mas acho melhor deixar pra qnd vc voltar. Beijos e boa sorte aí.
(e acho que vc deve abrir o msn sim - desculpa a invasão. Mesmo que as pessoas sejam de diferentes momentos da sua vida, elas todas de certa forma fazem parte de vc. Acho que seria uma maneira de não pirar estando aí nesse aparente "outro mundo")
Adorei!!!Sua descriçao tem cheiro e vozes.Sei não...será que você queria mesmo ter ido a outro lugar?
Boa sorte e boas histórias.
Noooossa! Fiquei muito tonta com esse texto!! Imagina estar aí! Pode crer... vc ta no Beleléu!
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