Saturday, May 17, 2008

TUBO DE VENTILAÇÃO

(Guia do Estado)

Num mundo ideal, as janelas dariam sempre para árvores frondosas, crepúsculos de calendário ou vizinhas distraídas. Aqui neste vale de lágrimas, no entanto, tenho que aceitar como vista do meu banheiro um vão de concreto onde a luz do sol jamais penetrou. Segundo o Jurandir, zelador zeloso e profundo conhecedor das questões condominiais, o nome técnico da anti-paisagem é “tubo de ventilação”.
Se a tal garganta que perpassa treze andares não brinda os moradores do Edifício Maria Eulália com visões do paraíso, ao menos distribui, para deleite do cronista, a trilha sonora de algumas vidas empilhadas acima e abaixo do meu banheiro.
Tem o garoto que ouve música sertaneja e canta junto. Tem a moça que passa a vida ao telefone, repetindo sempre a mesma conversa: “E ele? Não! E você? Sei. E ele? Não! E você? Sei.” Tem um senhor que tosse toda manhã, com uma força capaz de enviar seus perdigotos à Dinamarca, caso para lá sua janela estivesse virada -- e não, como já foi dito, para o “tubo de ventilação”. Tem os namorados adolescentes que tomam banho juntos, descobrindo as artimanhas e agruras do asseio a dois: “deixa eu, tá frio!”. “Calma, tem xampu no meu olho!”. “Lindoco, posso lavar?!”. “O que?”. “Ele...”. “Ele não, Gatucha! Tenho vergonha...”. “Ah, deixa, vai?!”. Tem alguém que passa as madrugadas no messenger. Triste... A noite toda aquele brrrrlump, brrrrlump -- um sapo eletrônico, a coaxar pelo prédio nossas solidões compartilhadas.
Semana passada, chegou pelo tubo uma coisa diferente. Não era som, era um cheiro. Cheiro de.... De que, meu deus?! Senti meu cérebro formigando, como se as memórias lá do fundo borbulhassem, confusas, querendo saber qual deveria emergir. Seria o desodorante da enfermeira que primeiro me pegou no colo? O xampu da minha mãe, na infância? O perfume de uma namoradinha da quinta série, que estava submerso há anos em algum rincão, ao lado do gosto do Halls de cereja e da música tema de Top Gun?
Fiquei ali parado, no box do chuveiro, de olhos fechados, com a sensação de estar muito próximo de uma coisa enorme e íntima, mas que ia se esvaindo, enquanto o cheiro sumia e se acalmava o alvoroço nas galés da memória. Então alguém deu a descarga, outro ligou o rádio e fui pegar uma coca na cozinha.

37 comments:

  1. Antonio gosto muito dos seus textos. Por favor, não demore muito pra postar outro...

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  2. ainda bem que se esvaiu, na real, que triste e bizarro seria se fosse essa sua madeleine.

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  3. ah, as vezes eu queria morar em apartamento, viu? aqui em casa a gente se contenta só com dois vizinhos e veja só, um possui karokê(mas não o dom do canto, tenha certeza) e a outra é a casa mais silenciosa que tem, dá até um pouco de medo daquela família. ah! me esqueci da menina da frente que sempre arranja um jeito de brigar com o namorado de madrugada para terminar num 'ah amoorrrrr'(sou de campinas). aí imagina, como será que eu sou pro meu vizinho? imagino que devem odiar minha cachorra, mas fora isso nada. enfim, ótimas observações. :) sabe que cheiro que me deixa louca? o de papel de carta antigo. lembra daquele cheirinho? provavelmente não(você é homem), mas se eu forçar posso até sentir um pouco. me pergunto porque pararam de fabricar aquilo.

    beijo

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  4. Lindo texto Antônio.
    Hj fiquei feliz da vida porque uma menina no orkut postou uma crônica sua na comunidade, que eu estava procurando havia um mês. O título dela é "Prova de amor",foi publicada na Capricho, e é a uma das mais bonitas na minha opinião.
    E desde já pesso a sua permissão pq eu postei no meu blog,desculpa, é que quero compartilha-la com meus amigos.
    um abraço!
    Sim... eu também acho q você deeveria atualizar mais seu blog
    beijos
    sou sua fã!!!

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  5. Eu gosto de morar em apartamento, porque quando não tenho nada pra fazer, o que geralmente me acontece sempre, fico reparando no que os vizinhos fazem/falam/ouvem e reticências. Fofoqueira talvez, ou uma simples observadora.
    Seus textos são lindos, parabéns!

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  6. indiscutivelmente o trecho mais sensível do texto é esse: "ao lado do gosto do Halls de cereja e da música tema de Top Gun?"

    (www.blogdogafanhoto.blogspot.com)

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  7. Parei aqui por acaso, curiosa sobre o homem faceiro tão íntimo da branca de neve e sua história triste...
    Me deparei com uma série de textos bacanas, "happy beggining..."
    Volto mais e sempre!
    bjos
    Deh
    solemescorpiao.wordpress.com

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  8. Nossa! Eu entraria em desespero se não me recordasse de onde conhecia o cheiro...nostalgias olfativas são constantes na minha vida.
    Se um dia eu soubesse que você visitou meu blog pularia 45 minutos sem parar.
    abraço da fã Michele Matos!

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  9. Hahahaha
    Belo texto!
    Como era de se esperar!

    Um dos meus maiores prazeres é saber que, ainda em meio a uma gripe profunda, um ócio nada criativo ou a alguma catátrofe mundial, eu virei aqui e lerei ótimos textos.

    Parabéns por tanto talento!
    Um beijo

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  10. E como é legal quando a gente 'quase-pega' uma memória que é boa, né, querido?
    Beijo grande e continuo sua fã.

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  11. antonio, eu conheci seus textos na capricho sabe, eu sou muito fã! fiquei chateada quando vc saiu e sinto falta até hoje. quando eu termino de ler dá uma sensação de quero mais. hoje minha amiga estava muito triste e eu li pra ela um texto seu e ela entrou na internet logo depois pra procurar outros. tem um até no perfil dela. hahahahahahahaha
    todos eles tem tudo a ver com tudo! sempre! os campeonatinhos, o cheiro que vem...
    sou sua fã! beijos!

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  12. simplesmente adorava seus textos na capricho, q bom q achei esse blog... e pra variar, adorei esse tb...
    bjo!

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  13. pior é quando o tão do duto de ventilação é do banheiro da suíte... aí vc tem que ouvir cada coisa dos quartos alheios... :X

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  14. No trabalho descobri, pior que o cheiro da m....., é o cheiro do bom ar, além de impregnar, denuncia!!!

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  15. Muito, muito, muito hilário seu texto, Antonio. O humor colocado assim, dessa maneira descritiva e tal. bem legal, mesmo.

    Não demore para postar mais textos, tá? Eu fico aqui ansiando pelos seus devaneios. hehehe

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  16. Adorei o texto,
    aliás,adoro todos os seus textos...!

    Beijos.

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  17. Eu ficaria desesperada se não me lembrasse do que era o cheiro =P

    Como qualquer bajulação é desnecessária só tenho a dizer:mais um ótimo texto de um ótimo escritor..

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  18. Ainda bem que tem akiii ;D

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  19. oafogado.blogspot.com
    todos meus livros lá.
    abraço.

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  20. antonio,tenho 16 anos e adoro seus textos,sao simples e sempre querem dizer algo,parabens!espero que voce tenha muito sucesso sempre!
    um beijo,nathalie

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  21. você é o homem da minha vida antônio. é. você é. e essa é uma das poucas certezas que já tive nesses meus lindos quinze anos, hehe.

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  22. Antonioo! Que delícia!
    Podia passar hras lendo seus textos.. e + outros... e +... e naum me cansar... tao inteligentes e unicos qnto musica popular brasileira... em ambos os casos posso me considerar uma pessoa privilegiada por ser brasileira (tirando, claro, o fato de 'ter de ser' submissa ao querido lula)...

    bom... de qlq maneira... esse post foi como um copo de leite puro e branquinhooo pra mim! cada gole foi apreciado como merecido...

    ah.. qndo descobrir do q foi o cheiro... me contaa!!!
    sou a menina doida q te mandou um e-mail qndo vc ia sair da capricho.. te chamando de pai... (um pai qse q desconhecido... lembra?! hauaau)

    anyway... aprecio-teee!! mtoo!!


    mtos bjos!
    Tah =D

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  23. Esse 'empilhamento' de gente serve pra isso, ao menos... queria morar numa cidade onde tivesse mais o que observar...

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  24. Adoro suas crônicas, mas gostaria que voce postasse com mais frequencia no blog. Sei que voce deve ser bastante ocupado, mas faz uma forcinha aiii, please...

    Bjão

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  25. Curiosa a onomatopéia do som do msn... Pelo menos é mais divertida do que o som de verdade.
    O do meu, eu tirei todos os sons irritantes, então acho que não posso ser sua vizinha. Até mesmo porque a janela do meu banheiro dá para uma árvore frondosa onde, graças a Deus, até hoje, nunca vi ninguém subir.

    Abraço, Antonio. Agora que achei seu blog, vou dar um jeito de passar aqui sempre.

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  26. agora eu tô curiosa! pensaaaa!

    obrigada!

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  27. Sr Antonio Prata,
    Há anos desde a época em que escrevia na revista Capricho que sou tua fã. Sempre quis lhe mandar alguns e-mails ou comentários, mas nunca tive coragem. Sou apenas mais uma fã maravilhada com seus textos e tenho diversos de exemplares somente para os ler novamente. Após a tua saída da Capricho, passei a acompanhar teu blog constantemente lendo muito o que escreves e me apaixonando cada vez mais pela leitura, pela língua portuguesa e pelo sonho de escrever textos tão belos um dia. Com certeza, és minha inspiração.
    Parabéns por todos os seus artigos e por ser esse escritor tão criativo e, pra mim pelo menos, um grande exemplo.

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  28. Olá...
    Bom... li alguns de seus textos... e claro, indiscutivelmente maravilhosos... bom... fiquei curiosa em saber se vc é o filho do Mário Prata!
    Se puderes me responder ficarei muito grata...
    Um grande beijo...
    Voltarei sempre, para degustar seus textos tão maravilhosamente escritos!
    Parabéns...
    Mais uma fã... rs!

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  29. Olá...
    Bom... li alguns de seus textos... e claro, indiscutivelmente maravilhosos... bom... fiquei curiosa em saber se vc é o filho do Mário Prata!
    Se puderes me responder ficarei muito grata...
    Um grande beijo...
    Voltarei sempre, para degustar seus textos tão maravilhosamente escritos!
    Parabéns...
    Mais uma fã... rs!

    Bom... eu sou essa menina aí de cima... a Ana... ou aliás essa Ana sou eu...rs!

    Esperarei pela resposta!

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  30. Nossa.Que saudades das suas crônicas na Capricho.Tem dias que eu pego todas as minhas revistas,pra reler suas crônicas.
    Sou tããão sua fã!

    beijos

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  31. Na aula de sociologia, descobri o Flâneur e pensei em você e seus textos. Muito bom.

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  32. Assinei a revista capricho durante muito tempo.cada vez que a revista chegava era uma alegria. eu a abria, ia diretamente na ultima pagina, me deliciava lendo mais uma cronica divertida.jogava a revista debaixo da cama e aguardava a proxima revista. nao me lembro de uma só capa da revista, mas me lembro de todas as suas cronicas e ilustraçoes que animavam ainda mais aqueles momentos de prazer ao lê-las

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  33. hahaha
    Me lembrou "comédias da vida privada"... na privada! hahaha
    Que perda as leitoras da Capricho sofreram! =/

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  34. É a minha estreia a comentar neste blog. Este texto giríssimo faz lembrar uma música de um reputado cantor português. Talvez tenha ouvido falar, caso não tenha procure numa loja de música ou, como todo o mundo, na internet. O cantor é Sérgio Godinho e a música "segundo andar direito" (4ª música do cd "melhor dos melhores". Vai sorrir logo que ouvir a música pela parecença com parte da sua descrição.
    Fica a sugestão.

    Abraço

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  35. Tenho uma recordação profunda de cheiros, que no meu dialeto de infância chamava-se cheiro-gosto, pq era tão concreto que dava para sentir na boca o gosto de tal recordação de sei lá o quê, que sempre fica atormentando, mas no fundo são quase sempre i-lembradas.
    Comecei a ler o seu " o Inferno atrás da pia" com especial afetação ao Aleph da V. Madalena, nossa.... Não acreditei. Também no Mercê -como costumo chamar o mercearia São Pedro- começou meu o relacionamento que hoje virou casamento e que onten foi comemorado como dia dos namorado.
    Me bateu uma profunda tristeza, tristeza com cheiro e gosto de relacionamento tristes que terminaram. Hoje supostamente casada, tenho certo gosto pelas minhas tristezas profundas de relacionamentos passados que começaram com gosto de halls cereja e terminaram assim... como uma recordação de algo que nem lembro mais, que estão lá no fundo, escondidos como um aleph nas prateleiras de detergente do mercearia.
    Não sei se é sua escrita ou se o poder transferêncial que tenho com minha analista(que a propósito foi quem me emprestou se livro)girou minha tristeza pra um lugar bem escondido, atráz de tanta quinquilharia da minha vida, que descubro agora um aleph que sepre esteve lá mas eu nunca tinha reparado. Penso que talvéz vc tenha algo haver com isso! Como o França que fala pro Marquinho, que fala pra vc que fala pra minha analista,que me conta e coloca um pouco de graça nessas tantas texturas, que a linguagem não daria conta de descrever... Fica só o cheiro-gosto disso tudo mesmo.
    Ana Luiza Zara

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  36. "Anonymous said...
    você é o homem da minha vida antônio. é. você é. e essa é uma das poucas certezas que já tive nesses meus lindos quinze anos, hehe."
    kkkkkkkkkkkkkkkkkk garanhãão ein !
    pá cas mina !

    desculpa. não resiti !

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