amores expresos, blog do ANTÔNIO

Monday, March 31, 2008

DESPEDIDA

(última coluna para a revista Capricho)

Não são vocês. Juro. Vocês são o máximo. Eu é que... Não, não vou me culpar, não vou dizer que “sou um idiota” ou “não sei o que está acontecendo”. Eu sou legal, vocês também e está tudo certo: é que tem uma hora que as coisas acabam. Ou continuam, só por preguiça ou falta de coragem de darmos um fim a elas, até irem murchando, embolorando. E isso eu não quero, nem vocês, certo?
Eu comecei aqui em 2001. Era um moleque de 23 anos, que ainda estranhava ter saído da escola, ter que ganhar a vida e pendurar os próprios quadros na parede. Não tinha me acostumado com o fato de que -- como escrevi numa das primeiras crônicas -- “se fizesse alguma coisa muito errada, iria para a cadeia, não para a sala do diretor”. Eu era um espião do lado de lá do terceiro colegial, dando (e procurando) uma piscadela cúmplice: ei, esses adultos são muito estranhos, né?
Durante todo esse tempo, eu disse tudo o que sabia (e o que não sabia, também) sobre escola, pais, primeira vez, namoros, drogas, anorexia e o sentido da vida. Opinei, com a maior cara de pau, sobre Deus e o mundo. Acontece que agora já estou com os dois pés fincados em território inimigo: tenho uns fios de barba brancos e -- confesso, envergonhado -- um multi-processador, não faço a menor idéia de quem seja Amy Winehouse e preocupa-me muito mais saber como vou criar meus filhos do que a relação com meus pais, entendem?
Vocês não sabem o quanto aprendi com vocês. Sério, não é demagogia de despedida. Para escrever aqui, semana sim, semana não, por sete anos, fui obrigado a olhar para trás, para frente, para os lados e, principalmente, para dentro. Escrevendo o Estive Pensando eu me tornei cronista e, de certa forma, adulto.
Sabe o que? Acho que pra vocês também vai ser muito legal. Nunca mais vão ter que me ouvir reclamando da adolescência, falando que o amor é lindo e a vida, apesar de difícil, é bela. Vão conhecer pessoas novas, descobrir maneiras diferentes de usar as frases e as crases, construir parágrafos e discursos, terão outros pontos de vista e pontos finais. Vão viver coisas que não viveriam, se continuassem comigo.
Quando começamos, éramos todos muito novos. Nós crescemos juntos, aprendemos juntos e nos entregamos, inteiros, por bastante tempo. Agora é hora de irmos cada um pra um lado, com os corações abertos e tentarmos ser felizes – não para sempre, porque isso não existe, mas sempre que possível. Muito obrigado por tudo. Mesmo.

Thursday, March 13, 2008

Bazar & casar: pegar ou largar

(publicado na Vogue)

“Olha o vestidinho wrap dress de jersey, galera! O vestidinho caiu de cem para oitenta e quatro e noventa!” – anunciava o locutor, com aquela animação de FM, no bazar de uma grife famosa. “Oitenta e quatro e noventa! Não dá pra perder, é pegar ou largar!”, ele insistia, e eu, que estava ali só para comprar uma calça jeans, que nem sabia que bazar tinha locutor ou o que diabos seria o tal wrap dress de jersey, me peguei andando, aflito, em direção à arara no fundo do galpão, com medo de estar perdendo aquela incrível oportunidade de compra.
Parei a uns dois metros da balbúrdia, assustado: uma dúzia de mulheres ofegantes arrancava os vestidos das araras e os viravam do avesso, atrás das etiquetas, como se encontrar a letra certa -- P, M ou G – lhes fosse abrir as portas do paraíso. Eu não sabia que esse negócio de bazar era tão sério.
Enquanto esperava na fila do caixa -- minha calça jeans pendurada no braço direito, como o pano de prato de um garçom -- me dei conta de que a cena dos vestidos não existia isolada, era uma dessas metonímias que a vida nos apresenta, pequenas amostras com as quais, fazendo uma simples regra de três, conseguimos vislumbrar o X de alguma questão superior. Pois se a balbúrdia dos vestidinhos – “caiu pra R$ 59,90! Loucuuura!” -- pouco me iluminou sobre os mistérios do wrap dress de jersey, acabou sendo muito elucidativa sobre o comportamento de uma parcela das mulheres da minha geração: as moças estão em busca de maridos com a ansiedade furiosa das compradoras do bazar. Mal encontram um homem solteiro, mais ou menos do tamanho e modelo que procuravam, já vão logo olhando a etiqueta, querendo saber se o tecido é de qualidade, se não vai desbotar assim que lavar ou soltar a costura no primeiro aperto.
O que faz com que, dos vinte e cinco para cima, as mulheres olhem os homens encostados no balcão do bar (ou da ponte-aérea, ou da Casa do Pão de Queijo, ou da, ou da, ou da...) como se fossem as últimas peças disponíveis na arara? E por que, mal disseram olá, elas já pensam se ele preferiria um labrador ou um border collie na casa que construirão juntos, depois do nascimento do segundo filho (uma menina)?
Em minhas imprecisas pesquisas, os hormônios aparecem como os maiores vilões, acusados de ser tão impertinentes quanto o cara do microfone, a gritar “os óvulos estão acabando! Os óvulos estão acabando!” nos ouvidos das pobres moças em flor. Minhas caras, culpem o tempo em seu devido tempo. Quem tem trinta anos hoje ainda tem óvulo pra dedéu. Não é preciso correr entre uma arara e outra, nem sofrer quando souber que uma boa peça, que estava dando sopa por aí, caiu nas mãos da concorrência. Mesmo porque, com os avanços da medicina, tem muita mulher com idade para ser avó dando entrada na maternidade.
Se a necessidade biológica não é a força motriz da ansiedade casadoira, o que seria? Carência, pura e simples, aparece em segundo lugar em minhas enquetes. As mulheres consultadas dizem ter síndrome de abstinência, às vezes com delirium tremens se, na tríade dominical DVD-Pipoca-Namorado, o terceiro elemento falta por mais de quatro semanas. Será que é isso? O medo de ficarem sozinhas as lança atrás de um projeto de longo prazo, envolvendo damas de honra, FGTS, babás no fim de semana, contrato judicial e idas freqüentes à Alô bebê?
Curioso é que essas mulheres são as filhas de 68, das mães que queimaram soutiens e de peito aberto, literalmente, foram atrás de suas independências. Então as meninas que nasceram supostamente libertas dos grilhões da falocracia chegam à maioridade e, em vez de se ajoelharem diante de uma foto de Simone de Beauvoir, acendem velas para Branca de Neve?
Não estou falando do desejo de se apaixonar, de viver uma história arrebatadora, de ter as pernas trêmulas e a voz gaga quando o cara surge. O que vejo, no fundo dos olhos de algumas mulheres, é muito mais o desejo de encontrar alguém para dividir um título familiar do Clube Pinheiros do que para tomar champanhe em Paris, e acho isso triste. Porque o título familiar, as idas à Alô bebê e a união dos FGTSs para comprarem uma casa juntos, onde crianças aprenderão a andar embaixo de uma jabuticabeira e ganharão um cachorrinho (labrador ou border collie?) só pode dar certo – na visão desse ignorante, que nem sabe o que é um vestidinho wrap dress de jersei, que também quer ser feliz com uma mulher e sofre quando está sozinho, não só aos domingos – se for a conseqüência inevitável do amor arrebatador, das pernas trêmulas, do desejo incontrolável e recorrente de tomar champanhe em Paris. (Ou Kaiser quente em Jundiaí, que seja, desde que com ele, desde que com ela).
O amor e o tesão são forças por demais poderosas – e, no entanto, delicadas – para serem trocadas pela serenidade de uma jabuticabeira. Viva Dionísio! Abaixo a planilha Excel! Eu vejo por aí os casais precocemente infelizes, que nasceram da fuga da solidão, e quase não acredito. Quando tivermos netos poderemos aceitar que o companheirismo tenha brotado ali onde antes crescia o desejo. Não agora. Esqueçam o locutor. Não comprem na promoção.

Jadeiltite

(Publicado no Guia do Estadão)

Quando quero criar um personagem estranho, descrevo um dos meus amigos. Quando quero criar um personagem mais estranho, recorro ao Guia de medicina ambulatorial e hospitalar da Unifesp/ Escola Paulista de Medicina -- Psiquiatria; um instrumento que todo escritor deveria ter. Síndromes, transtornos, psicoses, enfim, todos aqueles comportamentos que Nelson Rodrigues chamaria de “taras” ou “manias” aparecem ali, classificados e explicados pelos doutores.
O Guia é farto mas, infelizmente, incompleto. Não há, em suas 256 páginas, uma única menção à Síndrome de Jadeilton. Trata-se da “propensão a submeter-se ao jugo de pequenas autoridades; dificuldade de fazer valer seu ponto de vista em conflitos comezinhos, acarretando grande aflição e arrependimento”. Tanto eu quanto minha namorada – cujo nome não cito, para preserva-la – sofremos desse mal.
A moça em questão vem a ser uma talentosa e indômita jornalista. É capaz de inquirir, com o belo indicador em riste, chefes de Estado e generais, assassinos e empresários -- sua voz não treme, sua mão não sua e a verdade sempre aparece.
Eis que, outro dia, essa Lois Lane brasileira resolve dar uma festa. Lá pelos quarenta do segundo tempo, seu Jadeilton, o zelador, interfona, furioso, reclamando do barulho. Minha amada gelou. Era a síndrome atacando: a opinião que o zelador teria sobre ela era mais importante do que a do presidente da república. Nunca recuperou-se completamente.
Anteontem, levei uma camisa à alfaiataria aqui do bairro. Queria encurta-la. As duas senhorinhas que me receberam, no entanto, tinham planos mais ambiciosos. “Muita informação”, disse uma, desdenhando dos quatro bolsos de minha guayabera -- uma bela camisa caribenha, que García Márquez vestia ao receber o Nobel: um símbolo de nossa latinidad. “Eu tiraria três e ficava só com o da esquerda”, continuou a outra, num ataque orquestrado, visando atingir-me no cerne de minha jadeiltite. Com um fio de voz, tentei dissuadi-las, mas elas já não eram mais duas profissionais me prestando um serviço, eram senhoras do meu destino. Perdi a guayabera, mas não suas simpatias.
Espero que os autores do Guia de medicina incluam, na próxima edição, um capítulo sobre essa covardia das pequenas causas. Não agüento mais as broncas da faxineira, estou indo à falência com os aditivos que os frentistas me sugerem e, acima de tudo, nos esconder-mos de Jadeilton atrás do vaso da portaria está ficando cada dia mais difícil.