amores expresos, blog do ANTÔNIO

Friday, June 15, 2007

VOVÓ JÁ SENTIU VOLÚPIA

(Publicado no Guia do Estadão)

Não acredito em Deus, destino, karma ou qualquer outro nome a conduzir “a carroça de tudo pela estrada de nada”, como disse Fernando Pessoa. Penso que o córtex frontal, o placar do futebol e a floração das cerejeiras são resultado de algumas regras básicas da natureza e do bom, velho e desinteressado acaso.
Tal postura não faz de mim um pessimista resmungão, muito pelo contrário: não crer que haja qualquer roteiro por trás dos eventos deixa-me constantemente assombrado diante dos fatos inexplicáveis da vida. Por exemplo: há na rua Padre João Manuel, num muro do Conjunto Nacional, a seguinte pixação: “Vovó já sentiu volúpia”. A primeira vez que a vi, devia ter uns oito anos de idade. De lá pra cá, avenidas foram construídas, o Carandiru foi demolido, bairros inteiros surgiram do nada, a minha casa recebeu umas dez demãos de tinta, a livraria Cultura mudou-se, o Cinearte virou Bombril, mas a frase permanece, misteriosamente intocada.
Há uns vinte anos, reflito: qual o seu significado? Será uma pixação avulsa? Ou parte de uma série de outras questões sobre o sexo e o tempo espalhadas pela cidade, tipo “A menopausa espera pelo bebê”, “Amanhã ainda será ontem” ou “espermatozóides já são calvos”? Mais ainda: como, em São Paulo, num muro tão nobre e a despeito de chuvas ácidas, empreiteiros gananciosos e Vaporetos exterminadores, a vovó pode seguir exibindo sua ex-volúpia, sem ser incomodada?
Outro dia, passando pela Al. Santos, vi que haviam construído no muro uma porta de metal. Corri até lá e me dei conta – consternado como um arqueólogo diante das estátuas destruídas no Afeganistão – de que haviam mutilado um pedaço da volúpia.
No pasarán!, sussurrei para minha esfinge sem nariz, já ciente do iria fazer: entrar com um pedido de tombamento no IPHAN. Afinal, uma pixação de vinte anos está para a história da cidade como um prédio de duzentos. Acho importante a sua manutenção, não só arquitetonicamente, mas por seu conteúdo, digamos assim -- hum, hum --, simbólico. São Paulo é um caos, os sobrados morrem pisoteados pelos horrores neoclássicos, as margens das represas são invadidas, os rios são esgotos, mas a volúpia da vovó permanece, inscrita em vermelho, em área nobre, since (mais ou menos)1987. Não é um consolo?

Wednesday, June 13, 2007

DISTOPIA

Na juventude eu sonhava em ser cavalo marinho. Mas aí vieram as crianças, as responsabilidades, cada um se vira como pode. Eu tento olhar as coisas pelo lado positivo: pelo menos eu mexo com água, não é não?

Sunday, June 10, 2007

PROMESSA

(publicado na revista Claudia)

“Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus – enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor.”


Quando cheguei ao bar e a vi, rodeada de rostos conhecidos; quando sentei, sorrindo, depois de dar oi a todos e falando alguma dessas bobagens que a gente fala ao chegar, e os outros riem, e nos sentimos acolhidos na turma de cinco amigos em meio a dezoito milhões de desconhecidos; não percebi o que estava para acontecer. Achei-a bonita, ponto. E pensei – no momento em que puxava a cadeira para sentar-me – quem é essa moça bonita que eu não conheço, em meio aos outros que conheço tanto?
A primeira impressão é a que fica -- para trás. Pelo menos no meu caso. A imagem inicial que tenho de pessoas e lugares não tem nada a ver com a que se constrói depois de um tempo. Se naquele momento me perguntassem, portanto, o que eu achava da menina bonita, não iria me derreter em superlativos. Mas quando ela sorriu pela primeira vez, e a curva do sorriso foi abrindo caminho pelas bochechas e apontando para cima, em direção a dois olhões pretos e inteligentes, pensei assim: eu poderia amar essa mulher.
Não, não foi amor à primeira vista. Eu não estava loucamente atraído por ela, nem apaixonado. Não senti vontade de pular em cima e beijá-la imediatamente, nem aquela afobação que a gente já não sabe se é desejo ou consumismo, tipo: preciso dela imediatamente. Eu estava calmo. O amor é calmo.
Eu seria uma besta se dissesse que vi nos olhos dela a mesma perspectiva. Não vi. Aliás, mulher não é assim tão boba de dar bola em cinco minutos de conversa. O que reparei foi que ela me olhava curiosa: quem é esse cara que chegou? O que ele faz? O que ele pensa das coisas? E não houve uma frase que eu tenha dito aquela noite, um gesto que eu tenha feito, que não tenha sido, mesmo que indiretamente, para ela. Tomei cuidado para não deixar transparecer. (Nada menos atrativo, ao errarmos na dose, que o desejo). Mas ela soube -- e vi que gostou daquela atenção, tão exagerada quanto disfarçada.
Desculpe dizer, impaciente leitora, que não aconteceu nada de concreto. Nem beijos, nem champanhe, arranhões ou lençóis. Alguns chopes, algumas risadas arrancadas à fórceps com minhas piadas (e comemoradas como gols do Brasil, internamente) e, tenho certeza – no final eu tive certeza – uma mútua promessa de amor.
Eu poderia contar outras histórias, mais felizes e intensas, mas não valeriam à pena. Nós inflacionamos a felicidade. Ela está por aí, gasta, em propagandas de Campari, em outdoors de pasta de dentes, em livros, filmes, melodias e novelas das seis. Nenhuma felicidade real chega aos pés dessa que criamos. A única felicidade possível, acredito, é a promessa de felicidade. Já não há mais espaço para happy ends. Só para happy beginings. Esse é o meu. Foi ontem que conheci essa mulher. Não tenho a menor idéia do que pode acontecer, mas agradeço à vida por ter me enviado esse “presente ambíguo: uma possibilidade de amor” (...) “Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.”

Ps. A citação lá no começo e as aspas do final são da crônica Pequenas Epifanias, de Caio Fernando Abreu, que está no livro de mesmo nome, Ed. Agir.

Thursday, June 7, 2007

ALGUMA COISA MELHOR PRA FAZER

Eu não vou sair de casa porque tenho que escrever o romance. Eu não vou sair de casa porque tenho que escrever o romance. Eu não vou sair de casa porque tenho que escrever o romance. Eu não ia sair de casa porque tinha que escrever o romance.
Então, da Mercearia nós fomos – seis homens num Ford Ka – para uma festa no Berlim. Seis homens num Ford Ka é das ocorrências mais ridículas sobre a face da Terra. Durante o trajeto falou-se de dois assuntos: o aperto ali dentro e operações de troca de sexo – talvez pelo receio de uma possível gangrena advindo dos condenados ao banco de trás.
Quando chegamos ao Berlim, o papo tinha mudado um pouquinho e Fialho afirmava que tá cheio de mulher que tira uma costela para ficar com a cintura mais fina. Eu jurava que isso era impossível e os outros quatro apenas ouviam e evitavam tomar posição, mesmo porque, naquele sufoco, a única posição possível era aquela em que eles já estavam.
Chegamos. A multidãozinha saiu do carro. O flanelinha nos olhou com um misto de pena e ironia. O segurança foi babaca, como se nós fôssemos esse tipo de gente -- que nós, de fato, éramos --, que se mete, seis, num Ford Ka, e se joga na balada atrás das mina. Uhu.
Primeira verdade absoluta inferida na noite de ontem: estou muito velho para frequentar baladas onde demora mais para comprar uma cerveja do que para bebê-la. Aliás, acho que estou muito velho para chamar programas noturnos de balada. Decididamente, estou muito velho para andar, com cinco homens, num Ford Ka.
Ficamos uns quarenta minutos ali, zanzando, em meio a umas duzentas pessoas que também zanzavam. Tive uma conversa rápida com uma ex-namorada que eu não via faz tempo e gosto muito. Ela disse que capotou o carro. Disse que a vida tinha literalmente dado uma virada e agora ela queria ter filhos. Perguntou se eu acreditava nessas coisas e eu disse que sim, sem nenhuma ironia. E não sei por que cargas d´água resolvi, já que a gente estava falando coisas profundas, dizer que ela tinha se comportado muito mal há uns anos, quando tivemos um revival e ela sumiu sem mandar nem um e-mail. Não era pra ofender, nem pra começar uma discussão, era só uma coisa que eu queria falar. Ela disse que tinha mandado um e-mail, sim. Eu disse que ela não tinha mandado e-mail, não. Então nenhum dos dois soube mais o que dizer, era absolutamente inoportuno puxar um papo sobre troca de sexo ou extração de costelas, ela disse “é, eu sou uma escrotona”, coisa que nós dois sabemos que não é verdade, virou as costas e sumiu.
Tive uma rápida e interessante conversa sobre design com o Barão, que me explicou coisas muito curiosas sobre a cama, os copos e a função das meias, então decidimos, os seis homens, voltar para o Ford Ka e ver o que estava acontecendo do CB, ali do lado. No meio do caminho nos demos conta de que faltavam dois. Caralho, tínhamos esquecido o Zé e o Barão. Peguei uma direita, depois uma esquerda e, quando vi, estava na Avenida Paulista. Liguei para o Zé, expliquei a situação e eles foram andando. Chegamos ao CB na mesma hora.
Custava quinze reais para entrar, a pequena autoridade da porta, ou a porta da pequena autoridade, disse que não importava que fosse três e meia da manhã. Daniel citou a máxima de algum pré-socrático, “vocês têm alguma coisa melhor para fazer?”, e entramos. Dentro do CB era idêntico a dentro do Berlim e nós, os quatro homens do Ford e os dois a pé, ficamos zanzando, tendo conversas picadas com conhecidos e dançando ao lado de desconhecidas. Algumas vezes, os seis em torno da mesma desconhecida que, mui prontamente, saía de fininho. Tomamos Guiness, dançamos, Paulo chegou com sua jaqueta de couro, camiseta do Luis Miguel e lábia maldita e me convenceu, às cinco da manhã, a ir a uma festa. Eu disse que era impossível haver uma festa com gente dentro, quarta, às cinco da manhã. Ele disse que não era. E como, mais uma vez, não tínhamos nada melhor a fazer, fomos.
Foi ali no caminho, quando éramos dois num ford ka, que tive o primeiro lampejo existencial e me dei conta de que estava atravessando uma noite absolutamente vazia e sem sentido ao fim da qual minha vida não haveria mudado nem um milímetro, apenas minhas roupas teriam um terrível cheiro de cigarro. Será que eu estaria atravessando uma vida absolutamente vazia e sem sentido?
A festa de fato existia e havia umas dez pessoas -- que há uns dez anos atrás eu chamaria de “uns dez adultos” -- conversando. A dona era simpaticíssima e quando vi estava na cozinha diante de um prato de peru, arroz amarelo e umas panquequinhas que não consegui descobrir do que eram, mas comi umas quinze.
Quando você se vê numa cozinha desconhecida comendo panquequinhas e peru às cinco e meia, acha que a vida às vezes pode ficar bem estranha. Talvez por isso não se importe em participar, com sete desconhecidos (um deles, um garoto de uns nove anos), da dança das cadeiras, ao som de Rita Lee. O dia amanheceu, o moleque ganhou, eu fui para casa e pensei: afinal, o que eu quero com isso tudo? São sete da noite e, sinceramente, ainda não sei.
Agora com licença que, como eu ia dizendo, tenho que escrever o romance.