Monday, October 22, 2007

A gostosa

(Publicado no Guia do Estadão)

Sempre que entro num recinto público -- pode ser padaria, cartório, açougue ou velório – olho em volta, procurando a gostosa. Não o faço por desejo, carência, narcisismo ou outro simples reflexo de minha banal condição masculina. A gostosa é um acontecimento literário.
Ela pode ser loira ou morena, alta ou baixa, preta, branca, japonesa ou búlgara, não importa: a gostosa é um estado de espírito. Ou, se preferirem outra palavra, tão esgarçada por programas de esporte, revistas jovens e propagandas de achocolatados: uma atitude.
Hoje fui ao cartório. Havia ali, sentada, entre os motoboys e os aposentados, a esperar sua senha apitar no painel, uma mulher que parecia a Claudia Cardinale em Era uma vez no Oeste. Estava discretamente vestida, de cabelo preso, xale sobre os ombros.
Não era a gostosa. A gostosa não deixa dúvidas. Chegou cinco minutos depois, de calça jeans desbotada agarrada à bunda, combinando com um top apertado que espremia os peitos e deixava entrever um soutien preto.
Assim que entra, com seu rebolar, o cheiro do perfume e o movimento dos cabelos ela emite a todos, como que por telepatia, a incontornável informação: atenção, a gostosa chegou.
Muda tudo. Cada um sabe exatamente qual o seu lugar social diante da gostosa. O aposentado de jaqueta bege olha de soslaio e, quase triste, suspira. As moças do cartório franzem imperceptivelmente a sobrancelha, regozijando-se de suas virtudes feitas de crachás, cafés e conjuntinhos pretos. Um rapaz de óculos, meio nerd, olha pro teto, olha pro chão, as mãos lhe sobram. Todos arriscam um olhar em direção à gostosa, mas ela dá penas uma conferida panorâmica, mascando o chiclete -- displicentemente, como quem macera corações -- e retira a senha.
Então, do conjunto desconjuntado de homens, do meio dos aposentados e míopes, dos barrigudos e coxos, dos médios, dos graves e dos agudos, surge o Macho da Gostosa. Pode ser um motoboy bem apessoado, um playboy, um pequeno empresário novo-rico de correntinha de ouro. Não acontece nada. Eles apenas se olham e, tacitamente, todos sabem, a gostosa é dele. Tristeza para alguns, alívio para outros. Depois a gostosa vai para um lado, ele pro outro, não sobra ali nenhum ator daquelas bem ensaiadas cenas, apenas um perfume doce no ar e a voz da mocinha virtuosa chamando o próximo: cinquenta e quatro, cinco quatro!

5 comments:

  1. Cara, não há nada mais certo que a certeza da gostosa em relação à sua posição...
    O que nos resta?

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  2. Sempre q posso venho dar uma olhada no teu blog... raramente vejo os comentários.

    esse solitário(cometário) me chamou atenção...

    Prefiro as ruivas!!!

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  3. Eu sempre faço isso. Droga. Plágio Retroativo. Aprendi o que é plágio retroativo no domingopelamanha.blogspot.com
    Mas, tudo bem, acho que eu não descreveria como você.
    No mais, de vez em quando você acha que é o macho da gostosa?

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  4. Antônio, se alguém me pedir uma definição de crônica, vou pedir para ler esse seu texto. Como diria Aldir Blanc, simples e absurdo.

    Se puder, dá um pulo no meu blog: www.pedromarcos.blogspot.com

    Abs.

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  5. ai, de repente, me dei conta que fui a gostosa um dia... será?
    puxa, melhor nunca ter sido do que, um dia, se ver como a ex-gostosa...
    bjs

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